Gilberto Melo

A Justiça brasileira tem muito processo porque tem lado

“Com o advento da redemocratização, houve um incremento substancial do número de demandas judiciais. Tal fato tem sido invocado reiteradamente como motivação para reformas da legislação processual e, até mesmo, para que seja o juiz exonerado de fundamentar integralmente suas decisões ou mesmo de levar em consideração as alegações das partes.”

Victor Neiva*

Nesse sentido, cite-se a Repercussão Geral na Questão de Ordem no Agravo de Instrumento n. 791292 QO-RG / PE, em que afirmou categoricamente o Supremo Tribunal Federal que a obrigação constitucional de fundamentar as decisões não impede uma motivação sucinta, “sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão”.
 
Esta decisão soma-se a uma série de medidas legislativas e outros entendimentos jurisprudenciais que têm, incessantemente, restringido as possibilidades de que as partes, no processo judicial, sejam levadas em consideração. Como exemplo, citemos a possibilidade de indeferimento monocrático de recursos, a imposição de multas em face de embargos declaratórios (o recurso cabível para suprir omissões, obscuridades e contradições das decisões), o uso do sistema de repercussão geral para indeferimento de recursos, dentre outros.
 
O fato é que, nos últimos vinte anos, já foram feitas ao menos três grandes reformas da lei processual civil, uma finalizada em 1995, uma em 2001/2002 e a última, em decorrência da EC 45 (Reforma do Judiciário), finalizada em 2006/2007, sem que, na prática, se tenha observado efeitos práticos relevantes do ponto de vista da duração do processo ou mesmo da legitimação institucional do Judiciário. De fato, segundo o Índice de Confiança na Justiça Brasileira da Fundação Getúlio Vargas do segundo trimestre de 2012 ao primeiro de 2013[1], “comparando-se a confiabilidade no Poder Judiciário com a confiabilidade nas outras instituições, o resultado não foi muito positivo, uma vez que o Judiciário foi considerado uma das instituições menos confiáveis, ficando a frente apenas de 4 entre 11 instituições pesquisadas: os partidos políticos, o Congresso Nacional, as emissoras de televisão e a polícia. De acordo com os entrevistados, o Judiciário foi considerado uma instituição menos confiável que o Governo Federal, as grandes empresas, a imprensa escrita, o Ministério Público, a Igreja Católica e as Forças Armadas”.
 
Indaga-se então, ante o advento de um novo código de processo civil, se, de fato, é com mais do mesmo que teremos uma melhora da prestação jurisdicional?
 
Parece claro que não. De fato, não se está analisando com clareza as características e os fundamentos dos litígios no Brasil, para que se promova de fato uma maior efetividade do processo.
 
Para tanto, o documento base para a análise dos litígios no Brasil deve ser o intitulado 100 Maiores Litigantes, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça[2]. Através dele percebemos que o setor público, os bancos e as empresas de telefonia respondem por nada menos que 95% (noventa e cinco por cento) de todas as demandas judiciais do país, sendo 51% do setor público, 38% dos bancos e 6% das empresas de telefonia.
 
Assim, se cotejarmos este fato com a jurisprudência e a legislação que afeta estes agentes veremos que o excessivo número de demandas do Judiciário não se deve ao fato de existirem inúmeros processos e incidentes, mas porque a Justiça tem lado, o que, na prática, tem dado a estes litigantes o status de clientes preferenciais.
 
Analisemos separadamente o tratamento dado ás lides contra a Fazenda Pública daqueles de bancos e empresas de telefonia, eis que possuem ritos diferentes de tramitação.
 
Quanto aos litígios contra o Estado, vemos que além de uma série de vantagens processuais que lhe dão uma posição privilegiada quando litiga contra o cidadão, tais como prazo em quadruplo para contestar e em dobro para se defender, a remessa de ofício e o pagamento de suas dívidas por precatórios, conta a Fazenda com uma jurisprudência amplamente favorável aos interesses. Cito três exemplos em particular: a jurisprudência flagrantemente contrária a lei para não reconhecer a revelia da Fazenda Pública, a aplicação de juros de mora em relação às suas dívidas e o tratamento da inadimplência dos precatórios.
 
Entende, praticamente de forma uníssona a nossa Justiça que ao Estado não se aplica a revelia, que são os efeitos de não se apresentar a defesa no prazo legal, mesmo tendo o prazo em quadruplo para fazê-lo. Ocorre que o artigo 741 do Código de Processo Civil é categórico em afirmar que “Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre, dentre outras, da falta ou nulidade da citação,se o processo correu à revelia”. Ora, se uma das hipóteses legais de cabimentos dos embargos pressupõe a existência da revelia, não poderia a jurisprudência afirmar que ela inexiste.
 
Este entendimento jurisprudencial gerou uma situação absolutamente inusitada. Na prática, a omissão do Estado em se defender, torna ainda mais difícil a vida do cidadão que litiga contra ele. Com efeito, inexistindo uma contestação para balizar os fatos controvertidos e como não há revelia, a parte tem que provar tudo, até mesmo o que é evidente, aumentando sobremaneira o seu ônus.
 
Quanto aos juros de mora, que atribui os índices de atualização das dívidas não pagas, firmou o STJ que a sua regulamentação se trata de legislação processual que, em face disso, tem aplicação imediata. Portanto, o devedor, se for da administração pública, pode, a qualquer tempo, alterar o critério de calculo de sua dívida.
 
Usando esta concessão jurisprudencial, através da Lei 11.960/2009, todas as dívidas da Fazenda Pública que era corrigidas pelo INPC (em torno de 6% ao ano nos últimos cinco anos) acrescidos de juros de mora de 12% ao ano, passassem a sê-lo pela TR (em torno de 1% no mesmo período) mais juros de 6% a.a[3]. Destarte a correção de sua dívida caiu de cerca de 18% ao ano para cerca de 7%. É evidente que, neste cenário, em que a sua dívida judicial é corrigida abaixo até mesmo da taxa SELIC, torna-se extremamente vantajoso litigar.
 
Esta situação, que já é grave, torna-se escandalosa quando se analisa as condições de pagamento desta dívida, e este é o terceiro exemplo citado.
 
O pagamento das dívidas da Fazenda Pública se dá mediante a expedição de precatório, que é um título emitido pelo governo com prazo de vencimento até se encerrar o orçamento seguinte, que varia de seis meses a dois anos e meio[4]. Vê-se, portanto, uma enorme vantagem comparativa em relação aos particulares que, após o trânsito em julgado de sentença em seu desfavor, possuem 15 dias para pagar a dívida, sob pena de multa de 10% e de sofrer todas as contrições de um processo executivo.
 
Além deste prazo extremamente dilatado, passou a entender o Judiciário que não há inadimplência entre a expedição do título e seu efetivo pagamento, exonerando o devedor de arcar com juros de mora.
 
Como se já não fosse vantagem o suficiente, caso não pagos os precatórios, não há qualquer constrição ao devedor[5]. Atualmente, a dívida de precatórios remonta 94 bilhões de reais, ou 7,8% do PIB[6] do Brasil.
 
Vejamos a situação do Distrito Federal como exemplo. Apesar de ser a unidade da federação com a maior renda per capita e arrecadação por habitante, não quitou ainda os precatórios expedidos em 1997. Neste período, apesar de alegar crise financeira, foi sede da Copa do Mundo construindo o terceiro estádio mais caro do mundo, ao custo de US$ 830.000,00[7], e reajustou a remuneração de 36 carreiras de servidores públicos.
 
Não é à toa que, atualmente, o DF, com 2,33 milhões de habitantes, conta com 10 varas para tratar de assuntos relacionados ao ente distrital[8], enquanto toda a seção judiciária Federal do DF, com competência nacional e relacionada a toda a administração federal que atinge quase dez vezes mais cidadãos, possui 20 órgãos com a mesma finalidade[9].
 
Quanto ao Estado, portanto, resta muito claro o porquê de responder por mais da metade da demanda do Judiciário. É difícil de acreditar que alguém que não tenha que se defender, que escolha como e se uma dívida será paga veja no Judiciário uma ameaça contra as ilegalidades por ele praticadas.
 
Somos então obrigados a constatar que a ideia de Estado de Direito, enquanto a obrigação do poder público de cumprir as leis, ainda engatinha no Brasil.
 
Superada a análise da litigiosidade estatal, passemos então à corporativa.
 
Nesse sentido, vê-se claramente que a jurisprudência, particularmente em casos de danos morais, finda por legitimar ofensas em massa a direitos de cidadãos.
 
Com efeito, a título de fazer esforço para não alimentar uma suposta indústria de danos morais[10], o Judiciário tem adotado uma jurisprudência cada vez mais restritiva às condenação a este título e, particularmente, contra empresas e corporações. De fato, ao entender que aborrecimentos não configurariam dano moral e que não se pode permitir o “enriquecimento ilícito” a partir dos danos morais, vê-se, paulatinamente a redução em número e em valores das condenações a este título, A Justiça claramente se omite em usar este instrumento para forçar o cumprimento da lei.
 
Ora, o arbitramento dos valores de indenização por dano moral é o instrumento judicial que existe fundamentalmente para impor que não sejam praticadas novas ofensas não se repitam, além de para reparar os ofensas à honra ou a psique que não podem ser quantificadas.
 
A quantificação do dano moral, ao mesmo tempo em que visa à recomposição do patrimônio psicológico atingido, deve servir de recado para o futuro, evitando-se que o agente venha, repetindo a conduta lesiva, a ocasionar dano novamente.
 
Assim, vê-se que os critérios de arbitramento de valores devem ser sobremaneira modificados ante a gravidade da culpa do ofensor, o deveria implicar condenações maiores a cada vez que se repetisse a sua conduta.
 
Ocorre que, o Judiciário tem adotado a conduta exatamente oposta, legitimando condenações cada vez menores para a mesma ofensa.
 
Tomemos como exemplo as condenações por inscrições indevidas em cadastros de inadimplentes. Se no final dos anos 90 e início dos anos 2000, o Superior Tribunal de Justiça entendia razoável e adequada que bancos que indevidamente macularam o nome de seus clientes tivessem que indenizar em 100 salários mínimos[11], atualmente este juízo de razoabilidade remonta valores em torno de R$ 3000,00 a R$ 8.000,00[12]. Uma redução de cerca de 95% em salários mínimos.
 
Assim, a ilegalidade contumaz praticada por estes agentes corporativos teve como resposta não o agravamento da pena para desestimular a conduta, mas a sua paulatina redução, tornando cada vez mais lucrativa a conduta em contrapartida ao aviltamento da honra e do sofrimento de seres humanos.
 
Com efeito, grandes corporações tomam decisões em seus relacionamentos com os clientes com a calculadora na mão. Ao cobrar taxas ou serviços indevidos ou não contratados ou assumir riscos de macular o nome de seus cientes por cobranças abusivas verificam o quanto aquela ilegalidade trará de receita e deduzem aquilo que projetam ter que pagar de indenizações com a ilegalidade perpetrada.
 
Assim, torna-se uma evidência ofuscante a razão deste tipo de ação se repetir e aumentar há anos no Judiciário: a ofensa em massa de direitos torna-se mais lucrativa que corrigir procedimentos e cumprir a lei.
 
Destarte, não se trata de uma indústria em que o cidadão esteja buscando enriquecer em quantificar a sua dor, mas de uma em que corporações, verificando cada vez mais lucrativo ofender direitos, permanecem em sua conduta ilegal, premiada com reprimendas cada vez menores.
 
Dessa maneira, mantendo-se a contumácia na ilegalidade, quiçá no futuro, as condenações serão mais baratas do que multas de trânsito ou do que o valor mensal obtido pela ré de um único cliente, muito embora possam arrasar a reputação de pessoas que duramente batalharam por ela durante anos.
 
Eis o porquê de o tempo legal em filas de atendimento não serem respeitados, não se pagarem horas extras, cobrarem por serviços não contratados, incluir taxas abusivas dentre outras praticas reconhecidamente ilegais que já se tornaram atos comezinhos do cotidiano.
 
Ainda com relação à litigância corporativa, não se pode deixar de citar o que ocorre com os bancos, que respondem sozinhos por quase 20% dos processos judiciais no país. Chama-se atenção, com relação ao tratamento judicial dado às instituições financeiras, à recente aprovação pelo Supremo da cobrança de juros sobre juros, ou anatocismo.
 
Em 2000 o governo federal editou uma medida provisória que alterava o impedimento do anatocismo permitindo que as instituições financeiras pudessem passar a praticá-lo.
 
Ocorre que, como a medida provisória só pode ser utilizada pela Presidência da República em casos de relevância e urgência, a dificuldade de justificar que era indispensável que bancos passassem a receber por capital não investido acabou por motivar o ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade para anular a possibilidade de cobrança.
 
Esta ação, que tramita perante o STF, após ter sido colocada em julgamento e ante a possibilidade de ser declarada procedente, teve a sua análise interrompida por um pedido de vista feito por um ministro da corte, ficando paralisado o processo em seu gabinete por 11 anos.
 
Apesar do ajuizamento da ação ter ocorrido em 22 de setembro de 2000, o entendimento da corte só foi firmado no dia 4 de fevereiro de 2015, quando foi ratificada a cobrança dos juros compostos. O fundamento central do julgamento foi o de que, passados 15 anos, haveria uma ratificação tácita do congresso por não ter revogado o dispositivo, sendo inviável que o Judiciário, neste momento, avaliasse a urgência e a relevância da medida pois seria, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes, “a diferença entre autópsia e biópsia[13].
 
Não há e nem foi dada nenhuma explicação para que uma questão que afeta quase toda a população adulta brasileira tenha ficado adormecida em gabinete por mais de uma década esperando uma decisão, que se mostrou inviável exatamente pelo decurso do tempo.
 
Com isso, a cobrança de juros sobre juros, ou seja, a remuneração por capital não investido pelas instituições financeiras, findou por se legitimar judicialmente sem que sequer fosse discutida no Congresso Nacional.
 
Evidentemente, todos os processos em andamento que versavam sobre esta matéria findarão por ter resultado favorável aos bancos.
 
Assim, ante este tratamento jurisprudencial dado aos maiores litigantes, não se poderia esperar outra reação deles que não assumir riscos cada vez menores e rentáveis de novos processos, assoberbando cada vez mais a já custosa máquina judicial.
 
Vê-se, portanto, que uma análise mais acurada da dinâmica processual e das demandas judiciais revela que o crescente número de feitos deve-se não à natural busca de reconhecimento de direitos por seus cidadãos, mas a uma postura absolutamente permissiva do Judiciário com os grandes litigantes, o que tem legitimado e, mais que isso, estimulado, ofensas em massa a direitos reconhecidos em lei.
 
Nesse contexto, a iminente alteração da lei processual para aprofundar as medidas aplicadas nos últimos anos, com a maior restrição às postulações das partes, a busca de que as cortes superiores concentrem-se mais em teses do que em casos consubstancia não uma esperança de melhora nos serviços judicias, mas sim a crônica de uma morte anunciada. A da cidadania.
 
Com efeito, a se manter esta dinâmica expõe-se a sociedade ao risco de ocorrer com o processo judicial como um todo o mesmo que se deu com o controle concentrado de constitucionalidade. Nesse sentido, é fundamental citar o trabalho feito pelos professores Universidade de Brasília Alexandre Costa e Juliano Benvindo, intitulado “A Quem Interesse o Controle Concentrado de Constitucionalidade[14], cuja conclusão afirma que “a ampliação do controle concentrado, pouco cidadão e pouco efetivo na defesa de direitos e garantias fundamentais, vem sendo acompanhada da subtração da discursividade que acontece no sistema difuso. Em síntese, há um claro problema que agora começa a ser diagnosticado e que precisa de um forte debate cívico em torno do papel que devemos esperar de uma corte constitucional”.
 
Assim, é inexorável mais que um debate cívico a respeito do que esperar de uma corte constitucional, mas sim do que esperar de um Judiciário como um todo em um Estado Democrático de Direito. Os principais avanços na prestação jurisdicional vieram em verdade mais do ainda frágil sistema de controle externo, que iniciou a sistematização dos dados da Justiça e passou a traçar metas para julgamento e não de reformas processuais que legitimaram uma práxis absolutamente refratária à realização de direitos fundamentais e ao devido processo legal.
 
Notas:
[1] Segundo o Índice de Confiança na Justiça Brasileira da Fundação Getúlio Vargas do segundo trimestre de 2012 ao primeiro de 2013, a Justiça Brasileira possui 39% da confiança dos brasileiros.
[3] Em 25 de março deste ano, o STF julgou inconstitucional a aplicação da TR, mas, ao modular os efeitos de sua decisão determinou a sua aplicação até a data de julgamento. De qualquer forma, ter-se-ia uma redução de 50% dos juros de mora.
[4] Se o precatório por expedido, por exemplo, em 1º de julho de um ano, pode ser pago, sem a caracterização do atraso, até 31 de dezembro de dois anos à frente.
[5] Em decisão tomada ontem (26/03/2015), o STF fixou o prazo de 5 anos para pagamento dos precatórios vencidos. Como ainda não foi divulgado o acórdão, não foi possível verificar se há sanções em caso de descumprimento deste prazo.
[8] 8 Varas da Fazenda Pública, 1 Vara de Meio Ambiente e Assuntos Fundiários e 1 de Precatórios.
[9] Não foi computado na conta os juizados especiais nem distritais nem federais e excluídas as varas criminais da Justiça Federal.
[11] AgRg no Ag 178920/RJ de 22/09/1998 e RESP 208.924/SE de 12/06/00.
[12] AgRg no AResp 595.552/DF de 17/12/2014, AgRg no Aresp n. 524.371 de 2/12/2014 e 592.893 de 18.11.2014.
 
Autor: Victor Neiva, advogado em Brasília e integra a equipe de colaboradores de Diálogos do Sul 
Fonte: www.dialogosdosul.org.br