Gilberto Melo

O Imposto de Renda sobre juros de mora

No campo da tormentosa tributação pelo IR, refletiremos acerca dos juros de mora enquanto receita agregada auferida por potencial contribuinte, pessoa física ou jurídica. Não obstante, esclarecemos que a essência de nossas conclusões também poderá ser dirigida a figurantes outros do direito sempre que em meio a uma fenomenologia impositiva tributária que se lhe revele análoga, a exemplo do questionável Imposto sobre Serviços (ISS) em face de atividades securitárias e de locação de bens, dentre outros mais.

Indo diretamente ao ponto, consignemos como nosso primeiro pressuposto de trabalho o fato de que “Podemos mudar os nomes das coisas, mas sua natureza e suas operações sobre o entendimento não mudam jamais” (David Hume).

Por sua vez, nosso segundo e conexo pressuposto assenta-se no fato do direito tributário ser um ramo provido de autonomia apenas didática, de sorte a devermos, enquanto operadores do direito “buscar nos demais ramos científicos soluções ou caminhos para diversos dos problemas com os quais nos depararmos” (Renato Lopes Becho).

Aliás, o que as precitadas afirmações doutrinárias vêm a proclamar, em alta voz, o nosso atual Código Tributário Nacional (CTN), por meio de seu artigo 110, vem, igual e formalmente, a fazê-lo, aqui se constituindo, enfim, como a nossa terceira e derradeira premissa de trabalho: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias“.

Ou seja, devidamente alinhavados tais limites diante do tema proposto, já podemos nos aperceber de que toda e qualquer forma de manifestação jurídica atinente à incidência de juros sob um contexto de mora implicará numa sujeição absoluta destes aos valores tais como determinados pela seara específica do direito a que sejam originariamente referidos.

Os juros de mora prestam-se à recomposição de patrimônio
Sendo-nos, então, incontroversa a atribuição de uma função (natureza) indenizatória àqueles, deverá ser por meio de tal conjectura que haverá incondicionalmente de se expor, mormente diante do exercício estatal das competências constitucionais tributárias, com destaque ao Imposto de Renda (IR) – artigo 153, III, Constituição Federal.

Os juros de mora, realmente, não é demais frisar, prestam-se à recomposição de patrimônio em face de uma inadvertida inadimplência temporal ocorrida em âmbito contratual ou legal, deflagradora de uma perda involuntária e indevida diante da oportunidade de manejo, no tempo, de um potencial financeiro próprio.

Assim sendo, a obrigação pecuniária representada pelos juros de mora, para fins de incidência do IR, deverá ser tratada de forma plenamente autônoma, conforme os seus próprios contornos finalísticos demandarem, donde já nos é possível concluir, portanto, pela total disparidade conceitual existente entre a aquisição de receita indenizada, por conta de juros moratórios, e a aquisição de renda tal como constante da materialidade da hipótese de incidência tributária daquele imposto, então traduzida por um efetivo acréscimo patrimonial do contribuinte. Com efeito, nossa “Constituição não outorgou à União competência para tributar indenizações” (Roque Carrazza).

Ademais, querer-se atribuir ao direito tributário a função delimitadora de institutos jurídicos alheios às suas próprias bordas equivaleria a subverter o próprio sistema, em prejuízo da tão almejada segurança jurídica tributária, uma vez que ficaria ao talante de nossos legisladores a cômoda tarefa, literalmente, de se ‘dar os nomes aos bois‘, porém, sob os interesses únicos de ‘suas próprias fazendas‘, fazendo bom uso, aqui, de notória expressão popular.

Não seria crível, ainda, pugnar-se pela mudança da natureza jurídica indenizatória de uma obrigação acessória, como os juros de mora, somente por conta de equipará-la à natureza que viesse a ostentar a sua correlata obrigação principal, não adimplida a tempo.

Ao menos em âmbito de “natureza” das obrigações, não teria sentido, portanto, a aplicação da velha máxima romana segundo a qual “accessio cedit principal“, muito embora reconheçamos poder o direito obrigacional, para outras circunstâncias, desta extensão se socorrer, a exemplo da obrigação acessória que se finda conjuntamente com a extinção no tempo da principal. Tal extensibilidade, de seu turno, não seria a melhor hermenêutica quando se está a tratar da essência pura de um instituto de direito que possa vir a participar inadvertidamente da materialidade de um imposto.

Finalmente, sejam obrigações principais cíveis ou trabalhistas, remuneratórias ou indenizatórias, a interpretação conceitual de eventuais juros de mora que lhe digam respeito deverá permanecer sempre fiel à sua própria e inerente essência, que ressarcitória é, já previamente estruturada no campo do direito privado e suficiente o bastante para fulminar qualquer tentativa de incidência do IR que lhes venha querer ameaçar.

Autor: Walter Alexandre Bussamara, mestre em direito tributário pela PUC-SP e advogado em São Paulo
Fonte: Valor Econômico