Gilberto Melo

O precatório e a efetividade do processo após a Emenda 62 e o julgamento do STF sobre sua inconstitucionalidade

A Constituição não poderia obrigar a inclusão orçamentária do precatório, inclusive com sanção para o descumprimento, sem obrigar o pagamento. A previsão orçamentária é tão somente regra de Contabilidade Pública, para possibilitar o pagamento da despesa de um ente estatal. Não se pode conferir a uma simples regra contábil mais peso do que a satisfação do credor de precatório.
 
O Supremo Tribunal Federal, em recentíssimo julgamento, fulminou, por inconstitucionais, o art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, bem como alguns aspectos do art. 100 do corpo permanente, acrescidos por meio da Emenda Constitucional n.º 62, de 9 de dezembro de 2009.
 
Durante a sessão de julgamento das ADINS 4357 e 4425, ficou patente a inquietação dos eminentes ministros com a falta de efetividade da decisão judicial diante da patológica inadimplência na quitação dos precatórios por parte de Estados, Distrito Federal e Municípios.
 
Esse sentimento geral de impotência, inclusive daqueles ministros que votaram pela constitucionalidade da EC n.° 62/2009, na nossa óptica, data vênia, é fruto de uma interpretação superficial e literal do Texto Magno.
 
A norma constitucional estampada no § 5.º do art. 100, que determina o pagamento dos precatórios até o final do exercício seguinte, é norma de eficácia plena e de aplicabilidade imediata. Desse modo, não pode ficar desprovida de efetividade. Não se cuida de mera sugestão, opinião, recomendação etc. Trata-se de norma da mais alta hierarquia e imperatividade, conferindo ao credor da Fazenda Pública o direito subjetivo público de receber seu crédito até o final do exercício seguinte. Na precisa lição de LUÍS ROBERTO BARROSO, 
 
As normas constitucionais definidoras de direitos são as que tipicamente geram direitos subjetivos, investindo os jurisdicionados no poder de exigir do Estado – ou de outro eventual destinatário da norma prestações positivas ou negativas, que proporcionem o desfrute dos bens jurídicos nelas consagrados. Nessa categoria se incluem todas as normas concernentes aos direitos políticos, individuais, coletivos, sociais e difusos previstos na Constituição.
 
E mais adiante:
 
Vulnera-se a imperatividade de uma norma de direito quer quando se faz aquilo que ela proíbe, quer quando se deixa de fazer o que ela determina. Vale dizer: a Constituição é suscetível de descumprimento tanto por ação como por omissão.
 
Concluindo:
 
[…] toda norma constitucional é dotada de eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca de sua máxima efetividade. Todos os juízes e tribunais devem pautar sua atividade por tais pressupostos. Basta, portanto, a explicitação de que toda norma definidora de direito subjetivo constitucional tem aplicação direta e imediata, cabendo ao juiz competente para a causa integrar a ordem jurídica, quando isto seja indispensável ao exercício do direito.[1]
 
Por sua vez, a supremacia da norma constitucional, necessariamente, deve prevalecer. Nesse sentido deve ser conduzida toda a interpretação do ordenamento jurídico. Não podemos admitir, jamais, o amesquinhamento, sem consequência, do Texto Constitucional.
 
Supremacia, eficácia e efetividade das normas constitucionais, como não poderiam deixar de ser, são sempre reverenciadas no Supremo Tribunal Federal:
 
Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos tribunais – porque são írritos, nulos e devestidos de qualquer validade.
 
A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias.
 
A supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidas. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada.[2]
 
O atual § 6.°, do art.100, da Constituição Federal, norma mantida hígida pelo STF quando do julgamento das ADINS 4357 e 4425, autoriza o sequestro na hipótese de “não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito.”
 
O Texto Constitucional visa, com isso, a evitar que o órgão público possa fugir do pagamento por meio do artifício da não inclusão no orçamento. Esta não inclusão seria uma forma indireta de não pagar o crédito exequendo, dentro do prazo constitucionalmente estabelecido, ou seja, até o final do exercício seguinte.
 
Dessa forma, se o atual Texto Constitucional permite o sequestro, mesmo sem o cumprimento do princípio de previsão orçamentária obrigatória para pagamento das despesas públicas, qual seria o tratamento a ser dispensado quando o órgão público inclui no seu orçamento os requisitórios recebidos até 1.° de julho, sem, contudo, fazer o devido pagamento até o final do exercício seguinte? Nesse caso, como é óbvio, cabe a medida de sequestro em face do inadimplemento direto do órgão público. Ora, se o inadimplemento indireto (falta de inclusão no orçamento) permite o sequestro, por que o inadimplemento direto (com observância do princípio da previsão orçamentária) não permitiria?
 
O inadimplemento direto de um ente público, quer dizer, o não pagamento do requisitório até o final do exercício seguinte, a exemplo do caso de preterição no direito de precedência, e a não inclusão orçamentária, autorizam a adoção da medida do sequestro. Na verdade, não se faz necessário a Constituição trazer expressamente prevista essa hipótese, para que se possa fazer uso do instituto do sequestro. A essa conclusão se chega, facilmente, fazendo-se uso da interpretação sistemática. Não podemos olvidar, ainda, do princípio da unidade da Constituição. Como bem lembrado por HUGO DE BRITO MACHADO,
 
Acrescente-se que a interpretação das regras da Constituição deve ser feita com atenção para a unidade desta, de sorte que o significado de cada regra se faça compatível com a vontade unitária do seu texto.[3]
 
Não teria sentido a Constituição combater o descumprimento de forma indireta, com a não inclusão, no orçamento, do prazo de pagamento do precatório e deixar sem remédio o descumprimento de forma direta, onde há inclusão orçamentária, contudo, não há o pagamento dentro do prazo constitucionalmente estabelecido para tanto.
 
Vale lembrar, por oportuno, que, quando o egrégio Tribunal Superior do Trabalho, mediante a Instrução Normativa n.° 11/97, inciso III, deliberou que a não inclusão no orçamento era uma forma de preterição e, como tal, autorizaria a expedição de ordem de sequestro, o STF (ADIN 1.662) julgou inconstitucional esse dispositivo, sob o fundamento da impossibilidade de sequestro em situações desse jaez, em razão da prevalência do princípio da obrigatoriedade da previsão orçamentária para a realização de despesas públicas.
 
Agora, o arcabouço constitucional mudou. O atual Texto Constitucional (§ 6.° do art. 100) mitigou de vez o princípio da obrigatória previsão orçamentária para realização de despesas públicas. Assim, como se vê, pode haver o sequestro de rendas públicas, mesmo ante ausência de previsão orçamentária. De outra banda, a toda evidência, pode haver o sequestro quando presente a previsão orçamentária, porém não ocorre a liquidação do precatório dentro do prazo estabelecido pela Magna Carta (§ 5.°, art. 100, CF). Raciocinar em sentido contrário levaria ao absurdo de se admitir o sequestro de rendas públicas na ausência de previsão orçamentária e não admitir quando a verba foi devidamente orçada.
 
Afinal, o sequestro de rendas públicas sobre verbas não orçadas é muito mais drástico, bem mais grave do que aquele porventura incidente sobre valores anteriormente constantes do orçamento público. Inadmitir o sequestro de verbas públicas previamente orçadas e não pagas no prazo constitucional pode levar a comportamento amoral repugnante por parte de administradores inescrupulosos. Vamos dizer que determinado prefeito municipal fosse contumaz em não incluir no orçamento os requisitórios de pagamento recebidos do Poder Judiciário. Após a Emenda Constitucional n.º 62/2009, dito prefeito foi alertado, por seu procurador, de que agora a ardilosa manobra poderia ter como consequência o sequestro. Este, então, sem disfarçar o sorriso cínico, exprime: “Não tem problema. A gente coloca no orçamento, mas não paga e fica por isso mesmo.” Ora, a nossa ordem jurídica não pode conviver com uma teratologia dessa envergadura!
 
A inclusão orçamentária, vale enfatizar, é medida de cunho instrumental para o cumprimento do princípio de previsão orçamentária obrigatória para pagamento de despesas públicas. Trata-se, para usar uma linguagem própria do Direito Tributário, de uma obrigação acessória, necessária para o cumprimento da obrigação principal, que é a liquidação do débito. Ocorre, entretanto, que este princípio de há muito é mitigado para o pagamento dos débitos de menor monta da Fazenda Pública, liquidados por meio das chamadas Requisições de Pequeno Valor – RPV. Nestes casos, não há inclusão prévia em orçamento e, quando descumprido o prazo de pagamento, enseja a medida do sequestro (art. 17, § 2.º, da Lei n.º 10.259, de 12 de julho de 2001). Aqui, como se constata, estamos diante da adoção do sequestro, mesmo sem prévia inclusão orçamentária, por conta do não pagamento da dívida no prazo legal. Por que, então, não caberia o sequestro para o precatório não solvido no prazo constitucional? O tratamento deve ser igualitário!
 
Não seria crível que a Constituição obrigasse a inclusão orçamentária, inclusive com sanção para o descumprimento, e não obrigasse ao pagamento, até porque a prévia inclusão orçamentária é tão somente regra de Contabilidade Pública, para possibilitar o pagamento da despesa de um ente estatal. Não se pode conferir a uma simples regra contábil mais valor, relevância e peso do que a satisfação do credor de precatório.
 
O direito não pode ser interpretado de forma a levar a conclusões inconsistentes, despropositadas e esdrúxulas. Sempre atual é a lição judiciosa de CARLOS MAXIMILIANO,
 
Deve o direito ser interpretado inteligentemente, não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.[4]
 
Antes mesmo da Emenda Constitucional n.° 62, de 9 de dezembro de 2009, já sustentávamos a ideia de que o descumprimento do prazo constitucional para o pagamento do precatório, por si, autoriza a adoção da medida de sequestro. Nesse sentido é o artigo de nossa autoria, publicado no Informativo Bimestral da Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado do Ceará ATRACE, SET/OUT de 2007, p. 6, do qual merece destaque a seguinte passagem:
 
O prazo constitucional de pagamento dos precatórios, sob pena de menoscabo da Constituição e do próprio Estado Democrático de Direito, deve ser respeitado.
 
A dicção do texto constitucional ‘exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência’ não pode impressionar o intérprete mais arguto. A norma constitucional se refere, à toda evidência, ao preterimento ocorrido dentro do exercício destinado ao pagamento do precatório. É lógico. Não se pode cogitar preterimento após o final do exercício seguinte. Nesse momento todos os precatórios já devem se encontrar liquidados. A Constituição não pode encerrar contradição. Ela não pode cogitar do seu descumprimento, especialmente por parte dos órgãos públicos.
 
Logo, o credor da Fazenda Pública tem o direito de não ser preterido nem por outro nem no direito de receber seu crédito dentro do prazo constitucionalmente estabelecido.
 
Ora, se o simples preterimento do direito de precedência autoriza o seqüestro o que não dizer do preterimento muito maior, mais grave, execrável, in casu, do preterimento do próprio direito de receber seu crédito, com obediência do prazo determinado no § 1.° do art. 100 da Carta Magna. Afinal, quem pode o mais pode o menos.
 
Ao ter seu crédito incluído no orçamento, o credor da Fazenda Pública, passa a contar com duas garantias:
 
A) que irá receber o seu crédito até o final do exercício seguinte e
 
B) que não será preterido no seu direito de precedência.
 
O descumprimento de qualquer das garantias acima enseja o devido reparo, através da medida judicial do seqüestro. Ambas situações caracterizam tipos de preterição. Só que o direito ao recebimento do crédito é muito mais importante, relevante, do que o direito à precedência.
 
A execução contra a Fazenda Pública não pode ficar despida de efetividade.[5]
 
Assim, como o direito do credor público não pode ficar sem efetividade, o sequestro se apresenta como o único remédio, até pelo princípio estampado no art. 75 do Código Civil de Beviláqua onde fica assegurado que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura.”, apto a satisfazer o detentor de um crédito contra a Fazenda Pública reconhecido por decisão judicial definitiva.
 
A inadimplência contumaz do Poder Público no pagamento dos precatórios frustra o credor, desmoraliza o Judiciário e arranha o Estado Democrático de Direito. O sequestro das rendas públicas é o único remédio idôneo, existente no sistema, para combater a recalcitrância da Administração Pública. Cabe ao Judiciário prestigiar a Constituição e a si próprio, emprestando interpretação larga e eficaz ao instituto jurídico do sequestro, mormente com o advento do vigente § 6.º, do art. 100, da Magna Carta.
 
Notas
[1] Interpretação e Aplicação da Constituição, 5. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2003, pp, 255, 257 e 272.
 
[2] ADIN 293-7, Relator min. Celso de Mello, RT 700/221.
 
[3] Jornal Diário do Nordeste, 10 de março de 2013, Caderno 1, pg. 3.
 
[4] Interpretação e Aplicação do Direito. 2.ª ed, Rio de Janeiro: Livraria do Globo, 1933, p. 183.
 
[5] destaques não constantes do original
 
Autor: Augusto César Pereira da Silva, advogado em Fortaleza-CE