Gilberto Melo

STF conclui o julgamento do Plano Verão

A partir de agora, os casos que versam sobre Plano Verão serão concluídos nas instâncias inferiores, com o encerramento imediato das ações e a pacificação de mais essa questão tributária pela nossa Suprema Corte.
Em 20.11.2013 o Pleno do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento dos RREE 208.526 e 256.304, que cuidavam do expurgo inflacionário conhecido como “Plano Verão” quando, de modo artificial, o Governo divulgou taxa de correção monetária das demonstrações financeiras em patamar flagrantemente inferior ao que tinha sido observado pelos órgãos tradicionais de aferição da referida taxa mensal.
 
Antes da assentada de 20.11.2013 e levando em conta o tempo transcorrido desde o início do julgamento, faz-se necessário o breve retrospecto sobre o longo caminho do tema na Corte. Iniciado em 01.02.2001, o Relator, Ministro Marco Aurélio, proferiu voto no sentido de reconhecer à empresa contribuinte “o direito à correção monetária considerada a inflação do período nos termos da legislação revogada pelo chamado Plano Verão, e para declarar a inconstitucionalidade do § 1º do art. 30 da Lei nº 7.730/89 e do art. 30 da Lei nº 7.799/89” (cf. Informativo STF 215).[1]
 
Com efeito, no seu voto, o Ministro Marco Aurélio entendeu que: “o valor fixado para a OTN, que decorreu de expectativa de inflação, além de ter sido aplicado de forma retroativa, em ofensa à garantia do direito adquirido (CF, art. 5º, XXXVI) e ao princípio da irretroatividade (CF, art. 150, III, a), ficou muito aquém daquele efetivamente verificado no período, implicando, por essa razão, majoração da base de incidência do imposto sobre a renda e a criação fictícia de renda ou lucro, por via imprópria. Além disso, considerou que não se utilizaram os meios próprios para afastar os efeitos inflacionários, ante a obrigação tributária, afrontando-se os princípios da igualdade (CF, art. 150, II) e da capacidade contributiva (CF, art. 145, § 1º). Por fim, asseverou que tal fixação ainda se fez sem observância da própria base de cálculo do aludido imposto” (cf. Informativo STF 426).
 
Após o voto do Ministro Marco Aurélio, pediu vista o Ministro Nelson Jobim. Em 10.05.2006, em razão do transcurso do tempo e da significativa mudança na composição plenária da Suprema Corte, o julgamento foi renovado. Na ocasião, o Ministro Eros Grau proferiu o seu voto, no sentido de não conhecer do recurso, ao entendimento de que “o acórdão recorrido, ao decidir a matéria, fundara-se em interpretação de legislação infraconstitucional, o que ensejaria ofensa indireta à Constituição. Além disso, asseverou que não compete ao Poder Judiciário arbitrar, sem qualquer base científica ou econômica, um índice que melhor expresse a inflação ocorrida no mês de janeiro de 1989. Ressaltou, ainda, que a fixação de índice de correção da OTN no valor de NCz$ 10,50, consoante pleiteado pela recorrente, definido a partir de suposta inflação ‘real’ de 70,28%, beneficiaria injustificadamente o contribuinte, afetadas suas demonstrações financeiras por efeitos inflacionários meramente fictícios. Por fim, aduziu que as pessoas jurídicas não são titulares de direito à imutabilidade de índice de correção monetária” (cf. Informativo STF 427).
 
Posteriormente, o Ministro Joaquim Barbosa acompanhou o Ministro Eros Grau e o Ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o Ministro Marco Aurélio. Em seguida, pediu vista dos autos o Ministro Cezar Peluso. Em assentada de 20.06.2012, com substancioso e bem fundamentado voto, o Ministro Cezar Peluso abordou todas as questões submetidas ao exame da Suprema Corte. Inicialmente, reconheceu que a violação perpetrada contra a Constituição da República pelos dispositivos legais ocorreu de modo direto. Além disso, rechaçou a alegação de que a Corte estaria atuando como “legislador positivo”, na medida em que é inerente à declaração de inconstitucionalidade extirpar do ordenamento jurídico os dispositivos legais inquinados.
No mérito, decidiu no sentido da inconstitucionalidade dos dispositivos maculados e pela determinação do índice correto ao caso concreto. Reconheceu expressamente que o conceito de renda, cuja moldura é traçada pela Constituição da República, foi indevidamente extrapolado com a interferência arbitrária na própria base de incidência do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica. Além disso, entendeu que tal expurgo viria a permitir – de modo inconstitucional – a incidência do IRPJ sobre o patrimônio, e não sobre a renda. De igual modo, vislumbrou claramente a violação à capacidade contributiva e rechaçou, ademais, a espúria retroatividade pretendida pela lei questionada, alinhando-se com o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio.
 
Em seguida, a Ministra Rosa Weber proferiu voto acompanhando o robusto voto do Ministro Cezar Peluso e do Relator, no sentido de conhecer o recurso interposto pela empresa contribuinte e dar-lhe provimento, com o reconhecimento expresso de que não é proporcional e tampouco razoável permitir a introdução de tamanha distorção na base de incidência do IRPJ, como pretendeu a legislação maculada por inconstitucional. Decidiu que, embora o legislador ordinário detenha ampla liberdade de conformação, isso não significa distorcer o molde estabelecido em sede constitucional. Em seguida, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli.
 
Levando em conta que o julgamento foi iniciado junto ao Plenário do STF em 01.02.2001 e o pedido de vista formulado pelo Ministro Dias Toffoli já ultrapassava um ano, os patronos do caso pleitearam junto à Presidência da Corte a imediata liberação de voto daquele Ministro, o que ocorreu poucos meses depois. Uma vez liberado o voto do Ministro Dias Toffoli, o Presidente, Ministro Joaquim Barbosa, logo colocou o caso na pauta de julgamentos.
 
O voto do Ministro Dias Toffoli foi no sentido de conhecer os recursos extraordinários, na medida em que a discussão (ausência de atualização monetária) poderia sim ser passível de se relacionar ao conceito constitucional de renda.
 
Quanto ao mérito, o Ministro Dias Toffoli inaugurou divergência no sentido da constitucionalidade dos dispositivos inquinados, fundamentando-se em julgado que reconheceu a constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 8.200/91 (RE 201.465-MG). Em seu voto, limitou-se a veicular o entendimento adotado pelo Ministro Nelson Jobim no sentido de que se tratava de mero favor legal ditado por opção política legislativa e, portanto, não haveria qualquer direito e/ou violação a ser analisada. Em resumo, entendeu que inexiste uma indexação constitucional, isto é, não há imposição ou obrigação constitucional de indexação dos balanços das empresas. A alteração de índices indexadores para as demonstrações financeiras das empresas não ofenderia a moldura básica de renda esboçada em linhas gerais na Constituição. Além disso, entendeu que não cabe ao Poder Judiciário atuar como legislador positivo, sob pena de influenciar de maneira ativa na política econômica do Governo (via adequação dos índices aplicáveis).
 
O Ministro Dias Toffoli buscou fundamentar o seu voto na decisão anterior prolatada pelo Ministro Nelson Jobim em matéria diversa (Lei nº 8.200/91) daquela submetida ao seu julgamento no caso concreto (Plano Verão). Além disso, buscou fundamento também em trecho específico que foi pinçado do voto do Ministro Sepúlveda Pertence naquele caso. Apartado de seu sentido geral deu a entender que o argumento corroboraria o seu voto, mas cabe lembrar que o Ministro Sepúlveda Pertence foi vencido naquele julgamento (e, portanto, sustentou tese oposta àquela esposada pelo Ministro Dias Toffoli no julgamento do Plano Verão).
 
Logo depois do voto do Ministro Dias Toffoli, o Ministro Marco Aurélio ressaltou a importância do tema em questão e a demora no curso do julgamento. Esclareceu alguns pontos que foram confundidos ou embaralhados no voto do Ministro Toffoli. Retomou a noção constitucional de renda inerente ao debate posto e reiterou os pontos que suscitou no seu voto como Relator (como o “passe de mágica” que atribuiu valor inferior ao devido como correção monetária e, com isso, escamoteando-se a real inflação do período e de modo retroativo). Com a criação do lucro fictício, alcançou-se o patrimônio dos contribuintes para saciar a sanha arrecadatória do Fisco. Essas premissas constitucionais e essa realidade subjacente deveriam ser consideradas para que a análise verse sobre o conceito constitucional de renda, no sentir do Relator. Do contrário, de imposto sobre a renda não se trataria, vez que seria uma apropriação indevida pelo Estado do patrimônio dos contribuintes.
 
O Ministro Marco Aurélio reconheceu o direito de as empresas contribuintes que recorreram procederem à correção monetária na forma pleiteada. Assim, busca atribuir maior concretude à Lei Maior no sentido de assegurar segurança jurídica aos contribuintes e à sociedade (de modo geral).
 
Nesse ponto e no mesmo sentido, o patrono das empresas contribuintes recorrentes pediu a palavra para esclarecer questão de fato relacionada ao objeto da demanda, consistente no reconhecimento da violação ao conceito constitucional de renda, sem qualquer pretensão de que a Suprema Corte pró-ativamente determinasse qual índice seria aplicável.
 
Com efeito, isso seria decorrência lógica da própria declaração de inconstitucionalidade, com o efeito repristinatório do dispositivo anterior (revogado pela regra que foi afastada pela declaração de inconstitucionalidade), como reconhecido pelos Ministros na sequência do julgamento.
 
Em seguida, o Ministro Roberto Barroso proferiu voto no sentido da inconstitucionalidade, alinhado ao voto do Relator, com o reconhecimento do aumento artificial (inchando a base de cálculo e, pior, retroativamente). Além disso, em contraposição ao voto do Ministro Eros Grau (vencido), o Ministro Roberto Barroso registrou que entende se tratar de questão constitucional (e não meramente infra), bem como não há qualquer invasão judicial na esfera própria do Poder Legislativo.
 
O Ministro Luiz Fux, que inicialmente estava impedido de votar porque o seu antecessor (Ministro Eros Grau) votou por não conhecer os recursos em razão de ser matéria infraconstitucional, foi chamado a votar quanto ao mérito da questão. No mérito, buscou seguir a linha de raciocínio das decisões do STJ em recursos repetitivos, complementando, assim, o voto anterior do seu antecessor.
 
A Ministra Cármen Lúcia proferiu voto acompanhando o Relator, com os ajustes necessários e apontados pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Roberto Barroso.
 
Em seguida, o Ministro Gilmar Mendes prolatou voto acompanhando a divergência aberta quanto ao mérito pelo Ministro Dias Toffoli.
 
O Ministro Celso de Mello conheceu dos recursos interpostos, inclusive ressaltando a importância do tema submetido ao julgamento. Quanto ao mérito, prolatou bem fundamentado voto que acompanhou o voto do Relator no que tange ao abuso perpetrado pela União no dever de legislar, com o acréscimo indevido da noção constitucional de renda, inclusive com base em estudos técnicos e dados econômicos.
 
Por último, o Presidente, que tinha proferido voto no sentido de que preliminarmente a matéria seria de índole infraconstitucional, no tocante ao mérito da questão, acompanhou sem mais delongas o voto do Relator, engrossando a maioria convergente.
 
Desse modo, com oito votos convergentes, restou declarada a inconstitucionalidade dos dispositivos questionados, vencidos os Ministros Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
 
Concluído o julgamento dos RREE 208.526 e 256.304, foram chamados os demais casos sobre o tema (RREE 215.142 e 221.142). Depois de lido o relatório pelo Ministro Marco Aurélio, tanto o patrono das empresas contribuintes recorrentes como também a representante da Fazenda Nacional, de comum acordo, abriram mão do tempo de sustentação oral, vez que o tema replicava aquele cuja conclusão ocorrera momentos antes no Plenário. Tal gesto foi bem recebido pela Corte e recebeu congratulação expressa do Ministro Ricardo Lewandowski.
 
Em seguida, o voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, foi acompanhado de modo unânime, ainda que feitas algumas ressalvas de entendimentos pessoais (Ministros Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes) que restaram superados com a conclusão do julgamento anteriormente referido.
 
Ao final, por proposta do Ministro Gilmar Mendes, foram aplicados aos casos os efeitos do instituto da repercussão geral, vez que é Relator do RE 242.689-PR e que versa sobre o mesmo tema, com o encerramento dinâmico e imediato dos casos pendentes no Poder Judiciário. 
 
Por um lado diz-se que a Justiça tarda, mas não falha. Por outro, a demora exagerada na solução de questão constitucional (como ocorreu no caso concreto, com doze anos de trâmite só no Pleno do STF) gera a prestação jurisdicional tardia, com distorções insuperáveis no mundo fático (como desistências e adesões aos diferentes programas de parcelamento – REFIS que foram sucessivamente oferecidos pelo Governo e as situações consolidadas pelo transcurso inexorável do tempo). Por isso, o tema não é tido pela Fazenda Nacional como de grande reverberação econômica. A partir de agora, os casos que versam sobre Plano Verão serão concluídos nas instâncias inferiores, com o encerramento imediato das ações e a pacificação de mais essa questão tributária pela nossa Suprema Corte.  
 
Nota
[1] Eis o teor dos referidos dispositivos para melhor compreensão: “Art. 30. No período-base de 1989, a pessoa jurídica deverá efetuar a correção monetária das demonstrações financeiras de modo a refletir os efeitos da desvalorização da moeda observada anteriormente à vigência desta Lei. § 1º. Na correção monetária de que trata este artigo a pessoa jurídica deverá utilizar a OTN de NCz$ 6,92 (seis cruzados novos e noventa e dois centavos)” (Lei nº 7.730/89); “Art. 30. Para efeito de conversão em número de BTN, os saldos das contas sujeitas à correção monetária, existentes em 31 de janeiro de 1989, serão atualizados monetariamente, tomando-se por bases o valor da OTN de NCz$ 6,92” (Lei nº 7.799/89).
 
Autor: Fábio Martins de Andrade, autor dos livros “Mídi@ e Poder Judiciário: A influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro” (Ed. Lumen Juris, 2007) e “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF” (Ed. Quartier Latin, 2011), doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, mestre pela Universidade Candido Mendes – UCAM e pós-graduado em Direito Penal Econômico na Universidad Castilla-La Mancha – UCLM, Espanha, pós-graduado em Criminologia na Universidad de Salamanca – USAL, Espanha, pós-graduado em Control Judicial de Constitucionalidad na Universidad de Buenos Aires – UBA, com especialização e aperfeiçoamento em Direito Processual Constitucional na UERJ e membro de diversas instituições, dentre as quais: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, Associação Brasileira de Direito Financeiro, International Fiscal Association, Associação Brasileira de Direito Tributário, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Associação Internacional de Direito Penal.