Gilberto Melo

A loucura da SELIC no Judiciário

A utilização da SELIC pelo Judiciário, segundo o entendimento do tema 905 do STJ e principalmente após a EC 113, tem causado inúmeros problemas técnicos, insegurança jurídica e prejuízos vultosos.

Ao leitor interessado em uma análise mais aprofundada, diferente da abordagem superficial e equivocada que tem sido dada pelo Judiciário e pela comunidade jurídica, sugerimos a leitura do seguinte artigo publicado por nós no Conjur.

Estimulamos os comentários ao artigo, a fim de fomentarmos o debate sobre o tema.

Errata: Em nosso comentário ao final do artigo no Conjur afirmamos que o período de graça passa a ser de 18 meses, mas na verdade ele passou de 18 para 21 meses, de primeiro de julho para 2 de abril.

Segue o texto do artigo, na íntegra:

“Artigo 3º — Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente”. (EC 113/2021)

Os legisladores e o Judiciário têm transportado a Selic do universo macroeconômico para o universo jurídico de maneira atécnica, sem se aprofundar nas consequências e sem respeitar a estrutura do sistema jurídico. O que ameaça frontalmente o direito de propriedade e lesa não somente aos credores do Estado, bem como à própria Fazenda Pública, como veremos a seguir.

Há que se destacar, em primeiro lugar, a distinção entre investimento e crédito judicial. Diferentemente do rentista investidor, que se sujeita a riscos em troca de remuneração, o credor judicial tem direito à reparação integral (restitutio in integrum), baseado no direito fundamental à propriedade. O credor judicial não está realizando um investimento e não se sujeita aos riscos inerentes. Pelo contrário, a ele é garantido o direito à restituição do poder de compra e aos juros moratórios que, vale ressaltar, são distintos dos juros remuneratórios. Os juros de mora não servem para remunerar o capital, mas para penalizar o devedor pela demora e, por consequência, estimular o cumprimento da obrigação.

“Enquanto houver inflação, a correção monetária se impõe para que o Direito não nos leve a cometer injustiças. Não sacrifiquemos a Justiça a mitos, especialmente a mitos ultrapassados” (Arnold Wald).

Esse tema foi examinado exaustivamente pelo Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.357 e 4.425 e no RE 870.947, com Repercussão Geral, que julgou inconstitucional a TR (Taxa Referencial) para atualização de precatórios e débitos da Fazenda, sob os mesmos fundamentos ora cabíveis à Selic. Decidiu-se que o melhor indexador para preservar o poder aquisitivo da moeda, isto é, o direito de propriedade dos credores, é o IPCA-E, índice de preços medido na ponta do consumo pelo IBGE.

Quanto aos juros moratórios, que servem para penalizar o devedor pela demora e compeli-lo ao pagamento, a Corte decidiu que a taxa mais adequada é a taxa de juros da Caderneta de Poupança, afastando os percentuais fixos de 0,5% a.m. ou 1% a.m. até então utilizados.

Posteriormente, ao examinar o RE 870947 — Repercussão Geral, que se refere a débitos da Fazenda Pública em execução, antes que se tornem precatórios, o STF manteve os mesmos critérios citados.

Portanto, a conclusão final do STF para débitos da fazenda e precatórios foi de que o critério de atualização monetária deve ser apartado do critério de juros. São eles:

– IPCA-E/IBGE como indexador da inflação e 
– Juros da caderneta de poupança como juros de mora, embora com a diferença de que na poupança os juros são compostos e no judiciário são simples.

No entanto, na sórdida tentativa de imprimir mais um calote aos credores de precatórios sob o insustentável pretexto do equilíbrio das contas públicas, a EC 113 instituiu a Selic a partir de 12/2021 como atualização monetária e juros, critério que rechaçamos, entre outras, pelas seguintes justificativas:

1) Inconstitucionalidade: Em primeiro lugar, como citado, a matéria já foi julgada sobre os mesmos fundamentos nas ADIs 4357 e 4425 e RE 870947.
2) Ilegalidade: A Selic sequer foi criada por lei.
3) Insegurança jurídica: Por ser um instrumento da política macroeconômica, a Selic é inerentemente flutuante. Mas os critérios judiciais devem ser previsíveis para garantir a segurança jurídica tanto para os credores como para os devedores.

Em março de 1999, por exemplo, a meta da Selic era de 45% a.a., para uma inflação pelo IPCA-E de 8,92% naquele ano, o que significaria juros reais proporcionais simples de 2,76% a.m.

Já em agosto de 2020 temos o inverso. A meta da Selic era de 2,00% a.a., bem abaixo da inflação de 4,23% naquele ano, o que resultaria em juros reais negativos de -0,18% a.m.

Destaque-se que, com os juros reais negativos, temos a absurda situação de o credor estar pagando pela demora em receber o seu crédito!

Hoje, em março de 2022, o cenário parece novamente se inverter, com a meta da Selic superando os 11% a.a., bem acima da meta de inflação de 3,5%, ou até mesmo de projeções em torno de 6%.

Frise-se aqui que a insegurança jurídica afeta ambos os lados. A Fazenda, que espera o alívio das contas públicas, pode, para sua surpresa, a depender de inúmeros fatores, ver a situação se inverter.

4) Isonomia: A justificativa de adoção da Selic para os débitos tributários é pautada na isonomia, pois o critério cobrado pelo fisco é o mesmo pago em repetições de indébitos. Entretanto, a mesma justificativa não se estende aos débitos de outras naturezas.

5) Anomalia: Além da impensável correlação entre a taxa básica da economia e os critérios para débitos judiciais, é importantíssimo destacar que a Selic praticada no mercado é exponencial, composta. Entretanto, a praticada pelo judiciário é linear, simples, somada! A anomalia jurídica de calcular a atualização monetária, inerentemente composta, de maneira simples, resulta em prejuízo para os credores.

6) Atecnia: Nem sempre os termos iniciais e finais de juros acompanham o da atualização monetária. Aqueles podem ser anteriores, simultâneos ou posteriores a este, que pode ser, por exemplo, o evento danoso, a citação ou o trânsito em julgado. Contudo, com a Selic é impossível segregá-los, o que resulta em contas invariavelmente erradas!

7) Juros negativos: No período em que a Selic se coloca abaixo da inflação, o principal não é sequer recuperado. Por consequência, os juros moratórios, que seriam a penalização pela demora no pagamento, se tornam negativos, ou seja, passam a ser pagos pelo credor, o que é inadmissível.

8) Morosidade processual: Como consequência do item acima, os devedores teriam fartos motivos para postergar o pagamento do débito, com a eliminação da incidência dos juros moratórios, que têm o objetivo de estimular o cumprimento da obrigação. Adeus razoável duração do processo!

9) Aumento das despesas públicas: Como visto, o argumento de equilíbrio das contas públicas não se sustenta. Diante da incompatibilidade da Selic e a insegurança jurídica causada por ela, a Fazenda Pública pode ser surpreendida com o aumento da sua dívida.

10) Desvio de finalidade: É sabido que existem incontáveis medidas possíveis para equilibrar o orçamento público, que não passam pelo calote, mas esbarram no corporativismo ou em interesses particulares.

Por fim, tais justificativas são suficientes, em nosso entendimento, para demonstrar a loucura que é a utilização da Selic nos débitos judiciais e que medidas corretivas são urgentes. Já foram propostas ADIs contra a EC 113, como a 7047 e 7064, inclusive com pedido de suspensão liminar, dentre outros motivos, pelo uso da Selic. É importante para a manutenção da ordem jurídica, que seja deferido o pedido liminar e que o mérito seja brevemente julgado.


Gilberto Melo é parecerista jurídico-econômico-financeiro, especialista em liquidação de sentença e cálculos judiciais, extrajudiciais e de precatórios, propositor da tabela uniforme de fatores de atualização monetária para a Justiça Estadual aprovada no 11º ENCOGE. Engenheiro e Advogado. Pós-Graduado em Contabilidade. Autor do site www.gilbertomelo.com.br

Guilherme Melo é contador e perito especialista em liquidação de sentença.