Apesar de a reforma do Código de Processo Civil promovida em 2005 já garantir maior rapidez e eficácia nos processos de cobrança de títulos judiciais, os resultados da aplicação da Lei nº 11.232 às ações em tramitação na Justiça ainda não podem ser vistos de forma plena. Em vigor há pouco mais de dois anos – desde julho de 2006 -, a nova lei provoca divergências de interpretação entre os tribunais do país. E os entendimentos discrepantes sobre a nova legislação são generalizados na Justiça.
A jurisprudência sobre a aplicação da nova lei processual foi levantada pelo advogado Elias Marques de Medeiros Neto, do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados. Ele analisou decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos principais tribunais de Justiça (TJs) do país – São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Paraná. “Hoje os tribunais convivem com o conflito entre a busca de maior celeridade para satisfação do crédito, objetivo da reforma processual, e certas tradições”, diz Medeiros Neto.
Segundo o levantamento do advogado, as dúvidas em relação à interpretação da Lei nº 11.232 nos tribunais começam desde a execução provisória da sentença. Pela previsão da nova lei, o devedor tem um prazo de 15 dias para quitar o valor ao qual foi condenado a pagar. A legislação não especifica, no entanto, a partir de que momento esse prazo passa a ser contado. De acordo com o levantamento, para o STJ a contagem do prazo para o pagamento da condenação começa a partir do trânsito em julgado da ação, ou seja, quando não cabe mais recurso. Já o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem decisões tanto nesse mesmo sentido como em sentido exatamente contrário – ou seja, que exigem a intimação pessoal do devedor ou de seu advogado. E, no Rio de Janeiro, as decisões encontradas na amostragem foram todas no sentido de que o prazo passa a valer apenas a partir da intimação pessoal do devedor.
Para o advogado e ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Athos de Gusmão Carneiro, que ajudou a elaborar o anteprojeto de lei de reforma do Código de Processo Civil, a idéia era a de priorizar a efetivação da execução. Por isso, segundo ele, o prazo deveria ser contado a partir de quando o processo transita em julgado. Há advogados, no entanto, que entendem que deve ser priorizada a segurança ampla das partes – como Aristóteles Atheniense, vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional na época em que a reforma foi debatida e aprovada. O advogado defende que o prazo deve ser contado a partir da intimação pessoal do devedor, pois “a intimação pelo advogado é insuficiente porque o cliente pode ter mudado de endereço ou até de advogado.” Segundo ele, isso transferiria para o profissional a responsabilidade que deveria ser do oficial de Justiça.
Passado o prazo de 15 dias para o pagamento da dívida sem que ela seja quitada, a Lei nº 11.232 prevê o pagamento de uma multa de 10% sobre o valor total da condenação – outro ponto que gera divergências na Justiça, já que a legislação não deixa claro se a multa incide apenas na execução provisória – quando a decisão da primeira instância ainda é passível de recurso – ou na execução definitiva, quando a ação já transitou em julgado. Nesse caso, segundo o levantamento, há decisões favoráveis à incidência da multa na execução provisória nos TJ do Rio, de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Mato Grosso do Sul – sendo que nos tribunais paulista e fluminense há também decisões contrárias.
De acordo com advogados ouvidos pelo Valor, pela interpretação da lei a multa é devida mesmo na execução provisória. Para o professor de direito processual civil da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Cassio Scarpinella Bueno, a multa é devida tanto na execução provisória quanto na definitiva. “Não há distinção”, diz. Para o professor, cabe multa mesmo que a execução, posteriormente, possa ser reformada. Isso porque o devedor poderá cobrar do credor a diferença entre o valor arbitrado na sentença e a condenação definitiva com pedido de perdas e danos, se for o caso.
Um outro aspecto que traz divergência para os tribunais é se há ou não o pagamento de honorários advocatícios na fase de cumprimento da sentença. Nesse ponto, a Lei nº 11.232 não prevê como isso funcionaria. A dúvida foi gerada porque, a partir da reforma do Código de Processo Civil, não há mais duas fases distintas para o julgamento do mérito e a execução das ações judiciais. O STJ, além dos TJs do Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, entendem que os honorários são devidos se o devedor não pagar a dívida executada e quiser apresentar recurso. Mas há decisões nos tribunais paulista, gaúcho e fluminense que entendem não haver direito aos honorários, ainda que haja impugnação.
E, caso haja impugnação da sentença, há mais um desentendimento entre os tribunais do país. A Lei nº 11.232 diz que o devedor deve indicar desde logo os bens a serem penhorados, mas não detalha se para apresentar a impugnação seria necessário garantir o total da dívida. Alguns tribunais têm exigido uma garantia do valor total – como o de Minas Gerais -, enquanto outros aceitam a impugnação desde que a dívida esteja suficientemente garantida – como em São Paulo e no Rio Grande do Sul. As divergências se repete entre os advogados. Para o professor Scarpinella Bueno, a lei não excluiu o uso da garantia total e não haveria porque dispensá-la. Porém, o professor de processo civil da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), Paulo Eduardo Alves da Silva, entende que a prévia garantia seria desnecessária pelo novo Código de Processo Civil. Isso porque a impugnação não suspende mais a execução, como ocorria anteriormente.
Pelo menos dois pontos que têm criado divergências de entendimento entre os tribunais na aplicação do novo Código de Processo Civil (CPC) com relação à execução de dívidas poderão ser uniformizados ainda neste ano pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo a ministra Nancy Andrighi, da terceira turma e da segunda seção de direito privado do tribunal, a corte especial do STJ poderá analisar antes do recesso de fim de ano se cabe honorários advocatícios na fase de cumprimento de sentença e a partir de quando deve começar a contagem do prazo de 15 dias para o pagamento da condenação. A corte especial, órgão máximo do STJ, é dirigida pelo presidente do tribunal e composta pelos 15 ministros mais antigos da corte.
No caso dos honorários, a ministra tem defendido que cabe o pagamento na fase de execução por se tratar de uma continuação do trabalho desses profissionais. Em relação à contagem de prazo, Nancy Andrighi diz que a terceira turma tem decidido pela contagem a partir do trânsito em julgado, sem que haja a necessidade de intimação. A solução da questão, agora, ficará a cargo da corte especial.
A incidência de multa de 10% na fase de execução provisória também foi encaminhada em outubro à corte especial. O caso, porém, ainda não tem data para ser julgado. Com relação a esse tema, Nancy Andrighi afirma que vai estudar se poderia ser imposta minoração conforme o caso concreto. Isso já acontece, segundo ela, em relação às obrigações de fazer em que, muitas vezes, é cobrada pela Justiça uma multa proporcional ao que já tiver sido pago. (AA e LI)
Fonte: Valor Econômico