Especificamente no Estado de São Paulo, adotou-se, até o advento da lei 13.918/09, um critério que poderia ser descrito como híbrido: adoção da Taxa Selic, observando-se um mínimo de 1% ao mês. Por seu turno, modificando a sistemática de atualização dos débitos tributários no Estado de São Paulo, o art. 96 da lei SP 13.918/09 assim dispôs:
“Artigo 96 – O montante do imposto ou da multa, aplicada nos termos do artigo 85 desta lei, fica sujeito aos juros de mora, que incidem:
I – relativamente ao imposto: (….)
§1º – A taxa de juros de mora será de 0,13% (treze décimos por cento) ao dia.(…)
§4º – Os juros de mora previstos no §1º deste artigo, poderão ser reduzidos por ato do Secretário da Fazenda, observando-se como parâmetro as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo Banco Central do Brasil.
§5º – Em nenhuma hipótese a taxa de juros prevista neste artigo poderá ser inferior à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente.”
Como se percebe, fixou-se a seguinte sistemática:
• os juros de mora passam a ser calculados à taxa diária de 0,13% ao dia, o que representa – em capitalização simples – uma taxa mensal de até 3,9% ao mês;
• a referida taxa pode ser reduzida pelo Secretário da Fazenda, observando-se como critério as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo Banco Central do Brasil;
• a taxa reduzida por ato do Secretário da Fazenda não poderá ser inferior à taxa Selic, que serve de piso;
Modificou-se radicalmente o cálculo financeiro envolvido na atualização dos créditos tributários estaduais, adotando-se uma taxa de juros que, em um só ano, pode representar até 47,45%. Tal modificação gera efeitos que abrangem desde o cálculo financeiro da controvérsia tributária entre contribuinte e Estado até o próprio cálculo do estoque de créditos passíveis de recuperação pelo Estado, a ser computado em suas demonstrações financeiras, com reflexos os mais diversos nas finanças estatais.
Examinando o referido percentual, pode-se eventualmente questionar o desequilíbrio entre a nova taxa aplicada pelo Estado de São Paulo para a atualização de seus créditos tributários e a taxa de captação obtida pelo mesmo Estado em suas operações de crédito e também no Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal.
Por certo jamais se esperaria que a dívida tributária fosse atualizada pelos mesmos critérios usados para a rolagem de dívidas de longo prazo. Entretanto, fato é que não existem justificativas claras para subsidiar a opção do legislador estadual por um índice de juros de tamanha monta. Não há fundamento econômico conjuntural manifesto ou compreensível pelo cidadão comum que justifique a radical modificação empreendida pela lei SP 13.918/09.
Tal incompreensão se faz presente mesmo considerando os atuais níveis da Taxa Selic, utilizada de modo praticamente uniforme pelo Governo Federal e pelas demais Unidades da Federação, ou os percentuais adotados pelo próprio Estado de São Paulo para remuneração dos indébitos tributários (no âmbito federal, o mesmo índice é aplicável tanto à atualização do crédito como do débito fiscal) e dos depósitos administrativos. Qual é, afinal, o critério de proporcionalidade ou razoabilidade que fundamenta a opção do legislador paulista e confere validade material às novas regras?
Apesar de essas questões servirem como pretexto para uma investigação quanto à eventual violação à cláusula constitucional de razoabilidade e proporcionalidade da opção legislativa paulista, inclusive quanto à aplicabilidade, ou não, de precedentes do STF no sentido de que as Unidades Federadas seriam incompetentes para a fixação de índices superiores aos fixados pela União (cf. RE 183.907 e ADIn 442), o fato é que o §4º do art. 96 da lei 13.918/09, faculta ao Secretário da Fazenda reduzir os juros de mora de 0,13% ao dia, desde que observadas “as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo Banco Central do Brasil”.
Fazendo uso dessa competência, foram editadas as Resoluções 2/2010 e 11/2010 reduzindo os aludidos índices para 0,10% ao dia, aplicáveis tanto aos débitos tributários não inscritos em dívida ativa como aos já inscritos. Apesar dessa redução, ainda assim o índice mensal é significativo: de até 3,10% a.m. Em um ano-calendário, tem-se juros de 36,50% (ou seja, considerando a duração normal de um processo fiscal, ter-se-ia, ao seu final, juros que superam, e muito, o valor da dívida e respectiva multa).
Quanto à plena vigência do índice reduzido, devo abrir um parêntese para mencionar que certas instituições tem manifestado entendimento perante seus clientes no sentido de que essas reduções não mais estariam em vigor desde o advento do Decreto SP 55.437/10, que é posterior às Resoluções, e que incorporou as disposições da lei 13.918/09 ao Regulamento do ICMS.
Para elas, como o Decreto reproduziu no regulamento a taxa nominal de 0,13% a edição desse Decreto teria promovido uma espécie de “revogação tácita” das ditas Resoluções. A lógica desse raciocínio é a de que haveria uma norma superior revogando a norma inferior anteriormente editada.
Embora instigante, esse entendimento não parece ser o correto. A uma, porque esta claro que o contexto em torno do Decreto 55.437/10 envolve consolidação e incorporação de enunciados prescritivos da lei ao regulamento, sem intuito de inovação legislativa. Não há, portanto, nenhuma vontade manifesta ou eloqüente quanto à dita revogação. A duas, porque não há, aqui, uma relação entre uma norma superior (o Decreto) e uma norma inferior (a Resolução), mas sim uma relação de especialidade: a norma especial prevalece mesmo em face da edição de norma geral posterior que lhe é contrária. A três, porque a competência para tratar dessa taxa não foi conferida pela lei ao Governador, mas sim ao Secretário de Fazenda. Desse modo, ao Governador restaria tão-somente, reproduzir o enunciado da lei que trata da taxa de juros de 0,13% ao dia. Vale dizer, eventual modificação empreendida pelo Decreto seria ilegal por usurpação da competência conferida pelo legislador ao órgão técnico.
É fato que essas instituições sustentam (ou sustentaram) aquele entendimento perante seus clientes sob uma postura conservadora, com o pretexto de que, no mínimo, haveria um “risco” de aquela interpretação ser a adotada pelas autoridades. Mas mesmo essa postura é inapropriada, pois as tabelas práticas emitidas mensalmente pela Diretoria da Arrecadação da Secretaria de Fazenda do Estado de São Paulo servem, no mínimo, para evidenciar qual é, efetivamente, o entendimento adotado pelas autoridades paulistas quanto à norma em vigor, ou seja, quanto à vigência do décimo de juros diário. Tais Comunicados compõem o conjunto das normas complementares à legislação tributária na expressão do artigo 100, I e III, do CTN, e contra eles não poderá o Fisco no futuro se insurgir.
Enfim, o argumento apresentado por algumas instituições com o intuito de justificar a existência de um “risco” mais elevado na concessão de garantias, por exemplo, é instigante e suscita uma série de indagações relativas à teoria geral do direito, mas não resiste à análise mais aprofundada. Fecha parêntese.
Seja como for, o debate acima parte da premissa de que não há qualquer vício de invalidade nesse novo conjunto normativo. Explorando os fundamentos dessa premissa, porém, cabe ponderar qual, exatamente, é a natureza da delegação de competências efetivada pela Lei SP 13.918/09.
Sob essa perspectiva, e adotando-se a premissa de que a mencionada delegação de competência foi admitida por nosso ordenamento, indaga-se: estamos diante de uma competência discricionária conferida pela Lei ao Administrador para, segundo o seu prudente juízo de conveniência e oportunidade, promover variação naquela taxa, ou, ao revés, estamos diante do que se convencionou designar como um poder-dever da Administração Pública para, adequando a taxa à realidade de mercado, fixá-la em função daqueles parâmetros ditados pela lei, independentemente de juízo quanto à conveniência e oportunidade.
Basicamente, a diferença entre ambas as concepções resulta em que, sendo uma competência discricionária, caberia ao Secretário de Fazenda, segundo seu juízo, reduzir a taxa referida, observando as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo Banco Central do Brasil. Sob essa perspectiva, poderia o Administrador, simplesmente, deixar o percentual no teto indicado pela lei.
Por outro lado, sendo um poder-dever, caber-lhe-ia, obrigatoriamente, promover a redução da taxa, adequando-a à realidade de mercado baseada nos indicadores do Banco Central do Brasil, a saber, as taxas médias pré-fixadas das operações de crédito com recursos livres divulgadas pelo BC do Brasil (sob tal circunstância, a delegação de poderes constante da legislação se justificaria à luz do ideal de adequação das taxas de juros à realidade econômica).
Qualquer que seja a concepção adotada, porém, o parâmetro a ser seguido ao se deliberar a redução permanece inalterado. E, portanto, caberia indagar sobre a eventual ilegalidade da prática do ato administrativo de redução que não observa a média das taxas divulgadas pelo BC do Brasil, atualmente no importe de 7,5% a.a. , respeitando-se, é claro, o piso legal, ou seja, a Taxa Selic.
Com efeito, em consulta aos indicadores econômicos fornecidos pelo BC do Brasil, verifica-se que a taxa média de juros no 2º trimestre de 2010, relativa às operações de crédito com recursos livres, foi de 7,5% a.a. Ainda que se admitisse que o mínimo fosse a Taxa Selic, fato é que o percentual constante das Resoluções é bastante superior à referência adotada para efeito de redução. Observa-se, assim, que não se observou sequer as taxas pré-fixadas pelo BC do Brasil para operações de crédito com recursos livres, como determina a lei SP 13.918/09.
Enfatize-se que toda essa indagação também parte das premissas de que a nova taxa de juros e a prerrogativa de o Secretário de Fazenda reduzi-la são válidas. E indo mais além nessas reflexões, a verdade é que até mesmo a opção do legislador pela fixação dos juros em 0,13% ao dia e pela utilização do mercado de taxas livres como referência à redução dessa taxa é também passível de objeções.
Tal mercado reflete a oferta recursos que são livremente ofertados pelas instituições financeiras e taxas que são livremente pactuadas com os tomadores de recursos. As modalidades de créditos com recursos livres envolvem operações tão distintas como: capital de giro, conta garantida, aquisição de bens, vendor, hot money, desconto de duplicatas, desconto de promissórias, financiamento imobiliário, ACC, export notes e Resolução 63. E, direcionada às pessoas físicas, operações abrangendo: cheque especial, crédito pessoal, cartão de crédito, financiamento imobiliário e aquisição de veículos e outros.
Parece razoável afirmar que adotar a média dessas taxas como critério de atualização da dívida tributária resultará na utilização de índices que não guardam qualquer relação aparente, imediata ou mediata, direta ou indireta, com a dívida tributária em si ou com os custos financeiros para o Estado em decorrência do atraso no pagamento do tributo.
A única justificativa aparente para a adoção desse critério parece mesmo ser a lógica de apenar o cidadão sob a premissa de que contribuintes deixam de pagar seus tributos para se “financiar” junto ao Erário em vez de obter recursos junto às instituições financeiras. Tal cidadão, sob essa ótica, deveria devolver essa vantagem financeira ao erário. Tal lógica revelaria uma função sancionatória atribuída aos juros que, mais adequadamente, já é desempenhada pelas próprias multas previstas na legislação.
Mais ainda, tal opção legislativa também é passível de críticas por adotar como referência uma taxa que revela seu alinhamento com taxas de juros praticadas pelo mercado. Com isso, abre-se novamente o debate sobre a verdadeira natureza dessa nova taxa: há apenas uma taxa de juros moratórios ou, verdadeiramente, estamos diante de juros remuneratórios? Por fim, poder-se-ia ainda alegar em sua defesa que a natureza dessa nova taxa é indenizatória: mas, mesmo sob essa perspectiva, restaria a indagação: qual a referência dessa nova taxa aos lucros cessantes ou às perdas efetivamente percebidas pelo Erário, passíveis dessa indenização?
Em relação a todos esses questionamentos, restará aos órgãos de representação do Estado, expor os fundamentos e justificativas dessa opção legislativa, pois, como bem salientou o Ministro Celso de Mello no julgamento do RE 413.782/SC, impõe-se “…ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do ‘substantive due process of law’ (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais“. Ao menos por enquanto, há simplesmente o inconformismo e incompreensão do cidadão paulista quanto à opção feita por seu legislador!
Independentemente da resposta que venha a ser dada a cada uma dessas questões, certo é que o quanto antes o Poder Judiciário se pronuncie sobre tais temas, maior será a segurança jurídica do cidadão e a previsibilidade quanto à verdadeira equação financeira envolvida em qualquer controvérsia tributária com o Estado. Em qualquer hipótese, porém, restará a incompreensão quanto a essa medida adotada pelo nosso legislador.
Autor: Márcio Roberto Alabarce, advogado
Fonte: www.migalhas.com.br