É comum que o ente público procure o trabalhador para celebrar um acordo que vantagem alguma traz ao titular do crédito principal; pelo contrário, geralmente diminui-lhe bastante o valor a que originalmente teria direito, e que inevitavelmente iria receber, com atualização.
Resumo:
No exercício das funções de Secretário Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, no que se refere a precatório-requisitório e à requisição de pequeno valor (RPV), temos nos deparado com alguns temas – uns mais, outros menos complexos – que nos têm sido objeto diário de consulta por parte dos usuários, de seus advogados ou de representantes da Fazenda Pública, e mesmo de colegas servidores de outros órgãos judiciários, inclusive de outros Estados da Federação. O instituto do precatório é matéria palpitante no Direito brasileiro, ocasionalmente pauta de emendas constitucionais, como ocorreu recentemente com a EC n. 62, de 09 de dezembro de 2009, pelo que resolvemos, por interessante, formular um breve estudo sobre tais questões. Estes temas os agrupamos em alguns tópicos, que focarão, eminentemente, os procedimentos de operacionalização do instituto, do ponto de vista prático, sem se descurar, obviamente, do bom Direito. O objetivo do presente, além do de provocar a discussão jurídica, abrange o de, se possível for, auxiliar a compreensão de partes interessadas e da comunidade advocatícia acerca de algumas das questões pertinentes ao tema. Serão considerados, primordialmente, os procedimentos adotados na Justiça do Trabalho, que não se deverão diferenciar, em essência, daqueles adotados na Justiça Comum Federal, ressalvada uma ou outra regulamentação pontual do Tribunal Regional ou do Tribunal Superior respectivo, posto que a EC 62/2009 é, hoje, regulamentada pela Resolução n. 115/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de abrangência nacional.
1. Introdução – brevíssima análise da evolução histórica do instituto do precatório
O regime jurídico dos precatórios é constitucional. Por se tratar de ordem de pagamento em desfavor da Fazenda Pública – haja vista que o particular se submete ao regime de execução direta, de caráter infraconstitucional (CLT e CPC) – o legislador constituinte originário entendeu por bem regulamentá-lo diretamente no texto magno (art. 100, caput e seus atuais dezesseis parágrafos). E exatamente por fazer do texto constitucional, bem como em face da importância do instituto da coisa julgada, arrolada dentre as garantias fundamentais (art. 5º, XXXVI, CF), muitos doutrinadores entendem o precatório como sendo ele próprio um direito fundamental do credor que foi favorecido com uma decisão judicial transitada em julgado.
Partindo-se dessa premissa, e considerando que a Fazenda Pública, por legítima razão ou não, sempre desonrou o pagamento de suas dívidas, o constituinte (derivado e originário) já modificou várias vezes o regime jurídico dos precatórios.
A primeira mudança ocorreu por volta da promulgação da própria Constituição de 1988, pelo constituinte originário. Não é que tenha havido novidade com a Carta atual, pois a CF/67 já previa que “os pagamentos devidos pela Fazenda federal, estadual ou municipal, em virtude de sentença judiciária, ‘far-se-iam’ na ordem de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos (…)”. Também previa a CF/67 a inclusão da verba necessária no orçamento, a consignação dos créditos ao Poder Judiciário, e o sequestro em caso de preterição da ordem de pagamento (art. 102, caput, §§1º-2º). Ocorre que a CF/88 instituiu uma espécie de moratória à Fazenda Pública (art. 33, ADCT), quando dispôs que “o valor dos precatórios judiciais pendentes de pagamento na data da promulgação da Constituição, (…) poderá ser pago (…) no prazo máximo de oito anos, a partir de 1º de julho de 1989 (…)”.
A Constituição dispôs que os precatórios em atraso à data de 05/10/1988 fossem pagos integralmente, no prazo de 8 anos, a contar de 1º/07/1989. Ressalvaram-se apenas os créditos de natureza alimentícia (e foi a primeira vez que se fez ressalva a este tipo de precatório, embora apenas no ADCT). Assim, todos os precatórios deveriam ter sido honrados inelutavelmente até 1º/07/1997. Quanto aos precatórios alimentícios, os entes públicos não foram agraciados com a moratória; logo, deveriam quitá-los imediatamente.
Aproximadamente 12 (doze) anos depois, adveio a EC 30/2000, que acrescentou ao ADCT o art. 78. Este dispositivo estipulou uma nova moratória para a Fazenda: mais 10 (dez) anos. Agora, nem se tinham pago os precatórios pendentes à época da promulgação da CF/88 (tanto que o art. 33 permitia o parcelamento de seu montante em 8 anos), nem tampouco os que se acumularam com o passar da década de 90. Pelo contrário, em vários Estados e municípios, mormente no Estado de São Paulo, foi descoberta uma rede fraudulenta de desvio de verba pública que envolvia desde governadores e prefeitos até instituições financeiras. Como resultado, instalou-se uma CPI para averiguar o que ficou nacionalmente conhecido como “escândalo dos precatórios”, que teve como protagonistas o então prefeito da capital paulista, Paulo Maluf, e seu então secretário de finanças, Celso Pitta.[1]
Diante de uma fila crescente de precatórios, e perante o quadro que se mostrava, o constituinte derivado agraciou novamente a Fazenda com outra moratória. O direito fundamental da coisa julgada era relegado a segundo plano. O indivíduo tinha o direito reconhecido por decisão judicial transitada em julgado, mas recebia seu crédito a perder de vista. E sempre que a Administração atrasasse o pagamento, seria agraciada com nova dilação.
O que carreou de novidade a EC 30/2000 foi a diferenciação efetiva entre precatório alimentício e não alimentício, no texto constitucional (então art. 100, §1º-A), e a referência, pela primeira vez, à RPV (Requisição de Pequeno Valor), no então novel art. 78 do ADCT e no §3º (recém incluso) do art. 100 do texto efetivo. Não se definiu o que se deveria entender, contudo, por débito de pequeno valor.
Apenas 2 anos depois, sobreveio a EC 37/2002, que acrescentou ao ADCT, dentre outras providências, o art. 87, fixando os limites do débito de pequeno valor, ressalvada a edição de lei por cada ente federado, nos seguintes parâmetros:
Para efeito do que dispõem o § 3º do art. 100 da Constituição Federal e o art. 78 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias serão considerados de pequeno valor, até que se dê a publicação oficial das respectivas leis definidoras pelos entes da Federação, observado o disposto no § 4º do art. 100 da Constituição Federal, os débitos ou obrigações consignados em precatório judiciário, que tenham valor igual ou inferior a:
II – trinta salários-mínimos, perante a Fazenda dos Municípios.
Parágrafo único. Se o valor da execução ultrapassar o estabelecido neste artigo, o pagamento far-se-á, sempre, por meio de precatório, sendo facultada à parte exequente a renúncia ao crédito do valor excedente, para que possa optar pelo pagamento do saldo sem o precatório, da forma prevista no § 3º do art. 100.
Finalmente, ao final do ano passado, foi editada a EC 62, de 09 de dezembro de 2009. Assim como a EC 30/2000, a EC 62/2009 empreendeu relevantes mudanças no regime dos precatórios.
A primeira mudança notável foi a consagração de um entendimento que já se tinha na jurisprudência. A EC 62 permitiu que os créditos de titulares com no mínimo 60 (sessenta) anos de idade ou portadores de doença grave fossem pagos com preferência sobre quaisquer outros. No entanto, esse crédito privilegiadíssimo submete-se a um determinado limite, qual seja, o triplo do valor fixado pelo ente público devedor, para fins de RPV. Isto é, o privilégio do crédito vai até certo limite; o restante da dívida segue a fila regular dos precatórios. Noutras palavras, consagrou-se um entendimento que era meramente jurisprudencial, mas, por outro lado, impuseram-no limitação.
Para compensar a limitação imposta pelo novel art. 100, §2º, tem-se a segunda relevante mudança: cada ente público deverá obedecer, para fins de RPV, a um piso mínimo igual ao valor do maior benefício do RGPS (Regime Geral da Previdência Social) – art. 100, §4º. Logo, a maioria das leis que dispunham sobre pequeno valor, pelo patamar irrisório que estipulavam, restaram revogadas.
Um terceiro aspecto importantíssimo da EC 62/2009 foi a instituição do chamado regime especial. Esse tal regime especial seria, se tomado ao pé-da-letra, a pior violação já perpetrada contra os direitos daqueles que têm em seu favor uma decisão judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública. Ele permite que os entes federados, notadamente os que menos pagam seus débitos, vinculem o pagamento dos precatórios a uma receita líquida. Ora, trata-se de regime especial para quem? Para a Fazenda, que é a devedora?
Comenta Régis Fernandes de Oliveira (2010, p. 625): “(…) Poderíamos traduzir em linguagem comum o dispositivo constitucional: devo, mas pagarei apenas determinado limite do meu débito. Quem garante o calote? A Constituição Federal”. Não é difícil entender porque a proposta de emenda constitucional que redundou na EC 62 (PEC 351) ficou conhecida como PEC do calote dos precatórios. No Supremo Tribunal Federal, tramita, atualmente, a ADI 4357, que visa à declaração de inconstitucionalidade de vários dispositivos da emenda. Espera-se que o STF não lance mão, mais uma vez, do famigerado “not kennt kein gebot”[2] para, incutindo tese alemã no direito brasileiro, respaldar a ação governamental, ainda que em situações que não se afigurem tão emergenciais.
No âmbito infraconstitucional, a EC 62 foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução n. 115/2010.
Neste estudo, vamos discutir algumas das questões mais polemizadas no âmbito procedimental do precatório. O enfoque será essencialmente nos aspectos práticos do procedimento, e menos em pesquisa doutrinária e jurisprudencial. Este estudo não priorizará debates doutrinários teóricos, mas os aspectos práticos do procedimento de pagamento do precatório. Para tal, com base na experiência por nós adquirida com o trato diário do tema, no gerenciamento da Secretaria Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, separamos dez temas, que agrupamos nos cinco tópicos seguintes, e sobre os quais desenvolvemos as questões a serem debatidas.
Ab initio, diga-se que o se requisita é o pagamento do crédito, não o precatório em si, que é apenas o instrumento por meio do qual aquele se materializa. Requisita-se o pagamento de um crédito indiscutível, através, em regra, de um instrumento denominado precatório. Metonimicamente, toma-se o crédito pelo precatório, dizendo-se comumente que “o precatório está sendo requisitado”.
Precatório, do latim precata, significa pedido. De pedido, porém, o precatório nada tem. Cuida-se de uma requisição, uma determinação no sentido de que se faça o pagamento de um crédito consagrado por decisão imutável do Poder Judiciário. A adoção doutrinária da expressão “precatório-requisitório”, embora contraditória, parece querer minimizar os efeitos que a sinonímia constitucional adotada para este instrumento poderia, eventualmente, deixar transparecer, no sentido de favor, de solicitação.
Requisitar, entretanto, não é solicitar. A Fazenda Pública, deveras privilegiada por ter em seu proveito um sistema especial de execução processual, que não lhe impõe penhora ou outros meios de garantia do juízo, já não poderá, uma vez ciente da indiscutibilidade do crédito – ciência esta que se dá com a requisição – deixar de pagá-lo, ou postergá-lo por qualquer meio. Só lhe resta inscrevê-lo em orçamento, para que o pague ao final (ou até o final) do lapso temporal de que trata a Constituição Federal (art.100, §5º): até 31 de dezembro do exercício seguinte, se a requisição houver sido feita até 1º de julho do exercício corrente.
Ad exemplum, um precatório X, requisitado ao Município de Brasilândia (entenda-se: um crédito cujo pagamento está sendo requisitado, por meio do precatório X, ao município) entre 1º de janeiro a 1º de julho, a quo e ad quem inclusos, do corrente ano, deverá ser pago até 31 de dezembro do ano que vem. Atente-se: deverá! Trata-se de requisição, não de solicitação. Em não o pagando, o Judiciário poderá e deverá utilizar-se dos meios coercitivos que tiver disponíveis para que o ente público o faça, inclusive com sequestro direto das contas públicas, como será visto no próximo tópico.
Noutro giro, este mesmo precatório X, se requisitado entre 2 de julho e 31 de dezembro do corrente ano, só deverá ser quitado pela Fazenda Pública devedora daqui a dois exercícios financeiros, isto é, no final do ano posterior ao vindouro.
Este mecanismo não se modificou com a EC 62. É assim desde a CF/67. O que mudou foi a operacionalização desse procedimento de requisição.
Até 1996, ao menos na Justiça do Trabalho, o procedimento prático de requisição era feito da seguinte forma: finda a execução contra a Fazenda Pública, os credores eram intimados para apresentar as peças que formalizariam o precatório. Na prática, formava-se um novo processo (na verdade, novos autos, porque processo, no rigor jurídico, não mais haveria), que era encaminhado pelas Varas ao Tribunal respectivo, para que seu presidente os requisitasse.
Em abril de 1997, com o advento da Instrução Normativa n. 11 do Tribunal Superior do Trabalho, o Juízo a quo passou a ser o competente para a requisição. O procedimento da extração das peças, porém, continuou. Esse procedimento, além de dispendioso, possibilitava o equívoco (ou a má fé) de se extraírem em duplicidade as peças formalizatórias do precatório (uma primeira vez, logo após a intimação, e outra, alguns meses ou anos depois, por exemplo). No exercício das funções, já nos deparamos com precatórios idênticos (mesmo credor e mesmo devedor, e oriundos da mesma reclamatória, mas com numerações diversas, relativas a 2004 e a 2006), que, confrontados, revelavam haver se originado da mesma petição inicial. Neste caso em particular, tal proceder se deveu por equívoco da própria Vara do Trabalho, pois, ao ser interiorizada a Justiça do Trabalho no Piauí, justamente entre aqueles anos, as Varas recém-instaladas, em face da modificação de competência, receberam inúmeros processos das comarcas da Justiça Comum do Estado. Uns em cognição, outros em execução, outros com as peças formalizatórias já expedidas, pendentes de remessa ao Tribunal. Na autuação, eventuais duplicidades passaram despercebidas.
Em dezembro de 2007, o TST editou a IN n. 32/2007, que, em seu art. 10, dispôs que “os precatórios e as requisições de pequeno valor ‘seriam’ processados nos próprios autos do processo que os originaram”. Assim, tornou-se desnecessário o procedimento de extração de cópias dos autos. A própria reclamação trabalhista, uma vez finda em todas as suas fases, revestir-se-ia do aspecto de precatório e seria encaminhada ao Tribunal.
Alguns tribunais adotavam, como marco referencial para a formação da ordem cronológica, o retorno do aviso de recebimento (AR) do ofício requisitório. Inconveniente sem utilidade, pois vários desses avisos, na prática, jamais retornavam. Aliás, a IN n. 11/1997, em vigor anteriormente, já estabelecia que a ordem cronológica seria definida a partir da tão-só chegada do precatório ao Tribunal, o que não era observado. Como o ofício de requisição era firmado pelo próprio presidente em todos os precatórios, criava-se a falsa ilusão de se ter que aguardar o retorno do aviso de recebimento da carta.
Assim, a IN TST n. 32/2007 também estabeleceu, em seus arts. 5º e 6º, que as requisições de pagamento decorrentes de precatório ou RPV feitas à União seriam dirigidas ao presidente do Tribunal, e as requisições feitas às Fazendas Públicas do Estado e dos municípios seriam encaminhadas diretamente pelo juiz da execução. Portanto, no que concerne a Estados e municípios, o Juízo competente para expedir a requisição seria o de primeiro grau. Ainda assim, alguns tribunais permaneceram com a sistemática antiga, tendo o presidente do Tribunal que firmar todos os ofícios requisitórios. E continuou a espera pelo tal do AR, e sua utilização como referência para a formação da ordem cronológica.
O proceder correto só veio mesmo a ser observado, uniformemente, quando repetido no texto da Res. n. 115/2010 do CNJ. Em junho de 2010, a Res. n. 115 do CNJ, que regulamenta a EC 62/2009, uniformizou nacionalmente vários procedimentos atinentes a precatório. Em seu art. 4º, a novel norma dispõe: “(…) considera-se como momento de apresentação do precatório o do recebimento do ofício perante o Tribunal ao qual se vincula o juízo da execução”. Na prática, para a Justiça do Trabalho, é como já tratava a antiga IN n. 11/1997: a ordem cronológica será formada a partir da ordem de chegada dos autos ao Tribunal respectivo (os autos vêm acompanhados de um ofício de apresentação, que não é o ofício requisitório; este, a esta altura, já terá sido encaminhado pelo Juízo a quo ao chefe de governo da unidade federada devedora). No entanto, como as normas do CNJ causam imenso furor ao chegar aos tribunais, pelo enorme temor reverencial que a figura do Conselho provoca nos desembargadores e juízes de primeiro grau, decerto que os procedimentos definidos nesta resolução vêm hoje sendo observados por todos os tribunais do país, muito embora não tragam nenhuma novidade.
Dessarte, o procedimento de requisição de crédito em sede de precatório está hoje assim definido: a) o Juízo da execução requisita o pagamento do precatório ao prefeito e ao governador, e envia os autos (já requisitados) ao Tribunal, que apenas estabelecerá a ordem cronológica de pagamento dos mesmos; b) a ordem cronológica é estabelecida de acordo com a chegada dos autos ao Tribunal; em tempos de processo virtual, em que, na prática, vários precatórios “caem” ao mesmo tempo no sistema informatizado da Secretaria do Tribunal (mormente quando está próximo o 1º de julho), oriundos das mais diversas Varas, a ordem fica estabelecida por diferença de minutos ou segundos, e, ao menos no âmbito de nosso TRT22, sendo exato o tempo de chegada, estabelece-se a ordem cronológica conforme a numeração do processo (processos mais antigos ficam à frente dos mais recentes).
Em se tratando de precatório federal, remanesce, em tese, a competência do presidente do Tribunal para requisitá-lo, in casu, ao Presidente da República. No entanto, esse procedimento não é realizado. Como se trata de tribunal federal, e que, portanto, recebe recursos da própria União, o documento que faria as vezes de requisição é encaminhado ao Serviço de Orçamento e Finanças do Tribunal, a fim de que se faça o empenho da despesa. Os dados são encaminhados ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (SIAFI), que, por sua vez, repassa os valores devidos, uma vez vencido o precatório, para que o próprio Tribunal faça o pagamento.
Quanto ao litisconsórcio, a norma prevista no §1º do art. 5º da Res. n. 115/CNJ, no sentido de que os precatórios sejam expedidos individualizadamente, por credor, pode ter ou não efeito prático. No âmbito da Justiça do Trabalho, além de confrontar com o art. 10 da IN 32/TST, já comentado, se o Tribunal Regional detém regulamento que limita o número de reclamantes em litisconsórcio, a norma do Conselho em nada facilita a efetivação do procedimento de pagamento do precatório; pelo contrário: amplia desnecessariamente a ordem cronológica, complexifica os procedimentos de pagamento, dá margem a impugnações por parte dos exequentes. Se o precatório é a própria reclamação trabalhista, plúrima ou não, o precatório é um só.[3]
Em se tratando de RPV, o procedimento de requisição é apenas um pouco diferenciado.
Cuidando-se de dívida estadual ou municipal, o Juízo da execução expedirá a requisição, como no precatório, mas os autos permanecerão na Vara. O presidente do Tribunal não tem qualquer ingerência no procedimento de pagamento de pequeno valor. Também o prazo de vencimento do débito é outro: apenas 60 (sessenta) dias (art. 17 da Lei 10.259/2001 [juizados especiais federais]; art. 13, I, da Lei 12.153/2009 [juizados especiais da Fazenda Pública nos Estados e municípios]), contados da ciência da requisição, independentemente da data em que houver sido feita. Passado esse prazo, caso não pago o débito, o Juízo da execução pode sequestrá-lo das contas públicas. Em verdade, o rito é similar ao do precatório. Apenas se diferencia deste pelo montante do débito (ao menos quanto ao principal – vide item 5), quanto ao prazo para pagamento, e quanto ao juízo competente para efetivar o procedimento.
Também no âmbito federal, sendo devedora do pequeno valor a União, suas autarquias e fundações (as Universidades Federais em geral, por exemplo)[4], o ofício requisitório firmado pelo presidente do Tribunal é encaminhado ao serviço financeiro do Tribunal, para o pagamento do débito, nos mesmos parâmetros já definidos anteriormente para o precatório, respeitado, obviamente, o prazo diferenciado de sessenta dias.
Já foi visto como ocorre o procedimento prático da requisição, que é o definidor da ordem cronológica.
A ordem cronológica é o ponto de apoio sobre o qual se mantém todo o mecanismo do precatório estabelecido na Constituição Federal. Esta ordem é imutável, inalterável, indiscutível. Não há uma única hipótese prevista em lei que autorize a alteração da ordem cronológica, uma vez estabelecida. É vedado ao ente público manuseá-la, por qualquer meio, subreptício ou não, de modo a efetivar pagamentos sem a sua estrita observância. O próprio presidente do Tribunal, se o fizer, pode sofrer as cominações respectivas (art. 100, §7º, da CF/88). É possível reduzir o número de precatórios listados, excluindo-os da ordem, seja para a adequação do pagamento a outro rito (o da RPV), seja para favorecer o exequente preferencial, como será visto no próximo item, mas é radicalmente inadmissível alterar a mesma, cuja essência reside na cronologia. Quem está em posição posterior na ordem jamais ficará à frente de seu antecessor. A ordem cronológica para pagamento dos precatórios é um dos grandes marcos cristalizadores da moralidade administrativa no âmbito da Fazenda Pública, e clara expressão da ordem democrática brasileira.[5]
No exercício do cargo de Secretário Judiciário de Tribunal do Trabalho, em assessoria ao Presidente do Tribunal, procuramos ser enérgicos na manutenção da higidez dessa ordem. É comum que nos cheguem pedidos de homologação de acordos celebrados pelos entes públicos em sede de precatório. Sobre os acordos, falaremos mais no próximo item. Apenas para adiantar-nos, não raro tais acordos visam a favorecer exequentes que se encontram em posição bem posterior na ordem cronológica do município (tal prática é mais comum no âmbito municipal, em face da cultura de gentilezas eleitoreiras consagrada nos municípios brasileiros, desde a República Velha). Ora, admitir tal mecanismo seria compactuar com a burla à ordem cronológica, vez que o ente público estaria, na verdade, efetivando pagamento a quem não fosse o da vez. A homologação de tal acordo consagraria a prática (já quase centenária) de agrados e favores a angariar eleitorado; motivação, no mais das vezes, presente por trás dessa pretensão de conciliar espontaneamente com exequentes escolhidos a dedo na ordem. Tal pretensão é mais política e pessoal, e menos comprometida com o saneamento dos cofres públicos. No âmbito do TRT22, os acordos só são homologados se estiverem observando a estrita ordem cronológica.
Caso interessante em que se analisou recentemente a possibilidade de alteração da ordem cronológica foi o de dois precatórios plúrimos, originados do mesmo processo. Neste caso, por nós analisado, recordamos bem, uma parte dos exequentes havia pleiteado o pagamento por RPV, haja vista que seus créditos, à época, obedeciam o limite constitucional de quarenta salários-mínimos (a unidade federada devedora era o Estado do Piauí), conforme art. 87 do ADCT. Ocorre que o Estado do Piauí possuía lei definidora de pequeno valor: a Lei 5.250/2002, que o fixava no patamar máximo de 5 (cinco) salários mínimos. Como o Tribunal Regional considerava tal lei inconstitucional, o pleito dos requerentes havia sido deferido, ficando seus créditos na Vara de origem, para serem pagos por RPV. A outra parte dos exequentes teve seus créditos inscritos em precatório. Pouco depois, o Juízo da execução decidiu sobrestar o trâmite de todas as RPVs superiores ao patamar da lei estadual, até que o Supremo Tribunal Federal decidisse a questão.
Em junho de 2004, o STF entendeu pela constitucionalidade das leis locais que estabelecessem como pequeno valor débitos em patamares muito menores do que aqueles dos quais se utilizou o legislador constituinte como referência. A ação direta, aliás, teve origem justamente a partir da lei estadual piauiense (ADI 2868/PI), que, no fim das contas, foi considerada válida[6]. Como consequencia, os exequentes que haviam pleiteado o rito da RPV, no caso concreto em comento, restaram prejudicados, ficando seu crédito inscrito mesmo na fila dos precatórios, mas, agora, em posição bem posterior na ordem do que aquela em que se encontravam os colegas cujo crédito restou requisitado como precatório desde o início.
Recentemente, estes, do precatório mais antigo, chegaram à vez de pagamento, pleiteando aqueloutros, prejudicados com o sobrestamento no pagamento de seus créditos, fossem também pagos, na mesma oportunidade. Infelizmente, não houve como deferir o pleito, exatamente por configurar quebra de ordem. Fosse o precatório o mesmo desde o início, talvez até fosse possível o deferimento, posto já ter sido o empenho correspondente à totalidade do crédito incluído no orçamento do devedor, à época própria, pelo menos em tese. Assim sendo, pagar-se-ia a todos conjuntamente, excluindo-se o precatório posterior, sem prejuízo da previsão orçamentária do ente público. Não era este, porém, o caso. Em verdade, faltou uma visão mais delicada da matéria, por parte do Supremo, que poderia ter modulado os efeitos da decisão. Criticável também a postura do Juízo a quo, de sobrestar, à época, pleito legítimo e já deferido pelo presidente do Tribunal.
Pois bem.
Passado o prazo para pagamento do débito requisitado, tanto no precatório quanto na RPV, com rigorosa observância à ordem cronológica, o ente público deverá, imediatamente, providenciar a quitação do valor requisitado. Infelizmente, a minoria o faz e, em não o fazendo, o Juízo está autorizado a proceder ao sequestro. E aqui, adentramos a um assunto que já foi mais delicado.
Os tribunais sempre tiveram medo de efetivar procedimento de sequestro em sede de precatório. Não se estranhava o sequestro feito pelo Juízo da execução em sede de RPV, mas, até pouco tempo, falar em sequestro no âmbito do precatório era quase um crime. Olvidava-se de que o rito de um é, em essência, igual ao do outro, salvo, como já comentamos, quanto ao Juízo competente, valor do débito e prazo de pagamento.
No âmbito da RPV, dispõe expressamente o §2º do art. 17 da Lei 10.259/2001, verbis: “desatendida a requisição judicial, o Juiz determinará o sequestro do numerário suficiente ao cumprimento da decisão”. O procedimento de sequestro, portanto, era regularmente efetivado pelas Varas, sem quaisquer obstáculos de entendimento.
Já no rito precatorial, a jurisprudência sempre foi branda com os entes públicos, a não permitir ou a dificultar o procedimento de sequestro. A jurisprudência pacífica do STF, sedimentada desde a década de 70, era a de que somente se haveria de sequestrar contas públicas quando houvesse preterição da ordem cronológica. Ora, e quando não houvesse? O ente público nada pagaria, se quisesse, ficando por isso mesmo?
O STF prendia-se por demais ao CPC, que é uma lei ainda da mesma década de 70. Seu art. 731 é que afirma que, “se o credor for preterido no seu direito de preferência, o presidente do tribunal, que expediu a ordem, poderá, depois de ouvido o chefe do Ministério Público, ordenar o sequestro da quantia necessária (…)”. A preterição, contudo, não deveria ser a única hipótese autorizativa do sequestro, sob pena de se esvaziar a própria razão de ser do instituto do precatório. Como já dito, requisitar não é solicitar. Aliás, sequer essa burocracia de pedir parecer ao Ministério Público tem mais razão de ser, posto que o Parquet não é órgão defensor da Fazenda Pública, desde a Constituição de 1988. Há, inclusive, súmula do STJ nesse sentido, desde 1997[7].
O problema piorou quando, em setembro de 2000, sobreveio a EC n. 30, que praticamente repetiu a letra do art. 731 do CPC, na nova redação do §2º do art. 100, autorizando o sequestro apenas em caso de quebra de ordem, revitalizando essa jurisprudência do STF. Como a IN n. 11/1997 do TST já estava quebrando essa resistência, permitindo genericamente o sequestro, o advento da EC 30 confrontou com o entendimento que a Justiça do Trabalho vinha tendo sobre a matéria, provocando o ajuizamento de outra ação direta no STF: a ADI 1662/SP, onde se questionavam dispositivos da referida instrução normativa.
Depois da procedência da ação, nenhum tribunal federal mais ousou em efetivar sequestro quando da constatação do mero inadimplemento da obrigação de pagar o precatório, como haveria de ser[8]. Foi um regozijo para os entes públicos. O instituto caiu de vez na galhofa. O Judiciário requisitava, fazendo de conta de que dispunha de meios coercitivos para forçar o pagamento, e a Fazenda Pública fingia-se de desentendida, como se realmente fosse pagar alguma coisa (a velha postura do “João-sem-braço”).
Este quadro de inapetência só veio a melhorar recentemente, com o advento da EC 62/2009, que ampliou as possibilidades de sequestro para, além da quebra de ordem, a não-alocação orçamentária da verba. Hoje, pode-se efetivar o sequestro pelo só vencimento do precatório (como haveria de sê-lo, desde sempre), ao argumento de que, se o ente público não paga porque não tem dinheiro para fazê-lo, subentende-se que não tem porque não o reservou em orçamento. Isto, numa primeira análise.
Em suma: vencido o requisitório, procede-se ao sequestro do valor necessário e suficiente para quitá-lo, como pacificamente aceito no rito da RPV, que já nasceu em derivação ao precatório. Isto, em teoria. Na prática, a questão não é (nem pode ser) rigorosa assim.
A autoridade competente não pode nem deve sequestrar por sequestrar. O endividamento interno da Fazenda Pública é um problema histórico. Há de se saber lidar com ele. Sequestrar integralmente o valor substancial de um determinado precatório vencido, ou todo o valor somado de um conjunto de pequenos precatórios vencidos, ou mesmo todo um conjunto de RPVs vencidas, de uma única vez, poderá trazer sérios problemas aos munícipes ou à população de todo um Estado-membro. A fórmula vencimento-sequestro não pode ser utilizada cegamente em todo caso; seria o ideal, mas contra fatos não há argumentos. Se o ente público realmente não puder pagar o débito, o Judiciário poderá levá-lo à bancarrota com o procedimento do sequestro.
Talvez fosse este o fato que o STF procurou evitar, impondo limites à feitura do procedimento. Nesta senda, porém, esvaziou-se o instituto do precatório. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Basta bom senso, delicadeza, sensibilidade por parte da autoridade judiciária, no dado caso concreto.
Não se pode impedir o sequestro, sob pena de retirar do Judiciário a única arma que tem para forçar ao pagamento (seria o CNDT uma nova arma nesse sentido? Vide tópico 10). Também não se pode tomá-lo ao pé-da-letra, sob pena de “quebrar” o ente público. Neste ponto do estudo, é possível dizer: esqueçamos a questão relativa a se houve ou não, por parte do ente público, prévia inclusão do valor requisitado em orçamento; isto na maioria das vezes é apenas formalidade; um município pobre de qualquer lugar do país que sobreviva apenas do repasse de verbas federais mal tem orçamento para se manter, quanto mais para incluir qualquer despesa que lhe fuja à realidade. E, em uma boa parte desses municípios, observamos que aqueles que detêm longa e insuportável lista de precatórios vencidos devem este fardo a seus ex-gestores, que, durante anos de irresponsabilidade político-administrativa, apadrinharam currais eleitorais nos cargos da prefeitura, vindo este pessoal, mais tarde, a procurar o Judiciário para ajuizar reclamação trabalhista contra o próprio município, de quem receberam dinheiro por vários anos, sem que para isso houvessem tido aprovação em concurso, ou, quiçá, prestado, de fato, o serviço.
Em todo caso, evitemos entrar no mérito sobre se estes reclamantes realmente trabalharam, com dedicação, ou se compareciam apenas ao fim do mês para receber o contracheque. Sequer o Juízo da cognição poderia entrar neste mérito, pois o empregado esteve ali, à disposição do empregador. O relevante são as consequências que gestores aventureiros e despreparados deixam para a edilidade, ao irem embora.
O Judiciário, em sede de precatório, não tem (nem pode ter, é verdade) os olhos voltados para estes fatores. Sua obrigação é forçar o ente público a pagar a dívida. Porém, pode o Judiciário cumprir com sua função, de modo a possibilitar que o devedor possa superar essa fase difícil de suas finanças. E isto é, sim, possível, mormente quando este mesmo ente público hoje se encontra governado por gestores conscientes e responsáveis.
No âmbito do TRT22, utilizamos o bom senso para sopesar todas as peculiaridades em torno do caso concreto. Suponhamos que o fictício Município de Sibéria do Piauí “deva” ao Tribunal R$1.000.000,00 (um milhão de reais) em precatórios vincendos e que, passado o dia 31 de dezembro último, 20% (vinte por cento) deste débito tenha vencido. Ora, se providenciarmos um sequestro inteiriço de R$200.000,00 (duzentos mil reais), unicamente porque o débito está vencido, Sibéria do Piauí irá falir. Seus serviços paralisarão, seus habitantes não receberão salário, o comércio local estagnará por falta de circulação de moeda (e sabemos que, na maioria dos municípios do interior brasileiro, seus habitantes sobrevivem do pequeno serviço público ali existente). Qual a saída para, evitando esta situação, garantir o pagamento do requisitório? Uma coisa é certa: o precatório vencido não pode ficar sem quitação.
A saída encontrada no âmbito do TRT piauiense: sequestrar parceladamente. Se providenciarmos o sequestro mensal de parte do valor vencido, que possa o município pagar – digamos, 10% (dez por cento) deste valor, ou R$20.000,00 (vinte mil reais), no exemplo acima, restarão conciliados todos os fatores-problema antes comentados. Esse sequestro parcelado acaba tomando ares de pagamento espontâneo, cristalizando o que no TRT22 denominamos de repasse, inclusive possibilitando ao ente público que se programe financeiramente. Eventualmente, chega o final do exercício financeiro seguinte sem que os precatórios vencidos anteriormente tenham sido totalmente quitados, aos que se somarão os novos vencidos. Neste ponto, é hora de avaliar se não se poderia atualizar esse repasse. O importante é que todos os precatórios sejam pagos, de uma maneira que o município possa fazê-lo, tendo-se por cautela, sempre, o princípio da continuidade dos serviços públicos. Apenas em 2011, dezenas de municípios, na jurisdição do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, quitaram suas dívidas dessa forma, ficando livres os cofres públicos de qualquer restrição, não tendo mais precatórios inscritos em ordem cronológica, ou tendo alguns poucos, ainda por vencer ao final dos anos que se seguirão.
Por sua vez, o pagamento é feito aos exequentes na medida em que o repasse é efetivado, seguindo-se a ordem cronológica. Para os exequentes de um mesmo precatório plúrimo, cabe ao Tribunal fixar critério cronológico, que pode ser a ordem alfabética, a idade, o valor a receber, etc. No TRT22, adotamos este último, de modo que os exequentes que tenham menor valor a receber sejam pagos primeiro. Isto possibilita um maior alcance social a curto prazo, pois o repasse favorece um maior número de trabalhadores a cada mês.
Assim, para exemplificar, suponhamos que o débito vencido de Sibéria do Piauí reporte-se a cinco precatórios, totalizando os R$200.000,00 (duzentos mil reais) da seguinte forma:
a) Precatório I – R$5.000,00;
b) Precatório II – R$30.000,00, abrangendo três exequentes: Allisson (R$9.000,00), Alan (R$11.000,00) e Aline (R$10.000,00);
c) Precatório III – R$22.000,00, abrangendo oito exequentes; todos com menos de R$3.000,00 a receber;
d) Precatório IV – R$43.000,00;
e) Precatório V – R$100.000,00, abrangendo dez exequentes.
Assim, o valor do repasse mensal, fixado pelo Tribunal em R$20.000,00, no primeiro mês, quitará o precatório I, e parte do precatório II. Neste, os exequentes serão postos em ordem, conforme o valor a que têm direito (do menor para o maior), recebendo Allisson, integralmente, sua parcela, ainda no primeiro mês. Os R$4.000,00 restantes permanecerão em conta.
No mês subsequente, o Tribunal terá à disposição R$24.000,00, correspondente à soma do repasse mensal com o que sobejou do mês anterior. Serão quitados os créditos de Aline e Alan, nesta ordem. Sobrarão R$3.000,00, portanto. Este dinheiro poderá servir para pagar, ainda neste segundo mês, ao primeiro exequente do precatório III. Repisa-se: o critério de nosso Tribunal para a fixação da ordem dentro de um mesmo requisitório é o da ordem crescente do crédito de cada um; poderia ser outro o critério. O que importa é que um critério deverá existir, independentemente de se adotar a orientação do CNJ de expedir, para cada exequente, um precatório.
O pagamento dos precatórios vencidos do Município de Sibéria do Piauí prosseguirá, nestes parâmetros, até que sejam inteiramente quitados. No exemplo dado, em menos de um ano, com algum inevitável aperto financeiro em suas contas, a edilidade terá quitado seu débito trabalhista, ficando livre de restrições em seus cofres.
Como dito anteriormente, não existe possibilidade de se alterar a ordem cronológica. Há, isto sim, há maneiras de se evitá-la, ou de reduzir o tempo de espera, de modo que o titular do crédito possa receber mais brevemente seu dinheiro. Estas maneiras são três: a) conciliando devedor e credor; b) tendo o exequente direito a pagamento preferencial; c) renunciando o exequente a parte de seu crédito, de modo a adequar o rito ao da RPV.
Não vemos com bons olhos a conciliação em sede de precatório. É lícito às partes contendoras, em processo judicial, conciliar, a qualquer tempo. Trata-se, antes de tudo, de medida conveniente, tanto às partes quanto ao Judiciário, evitando-se o prolongamento do conflito e o dispêndio da máquina pública. Ocorre que, na fase de precatório, não há mais processo, mas mero procedimento. Não há mais lide, nem, via de regra, grande movimento do aparato judiciário para dar impulso oficial ao processo. A conciliação encontra sua razão de ser enquanto persiste o conflito, já inexistente durante a fase precatorial. Nesta fase, cabe apenas ao exequente aguardar o recebimento de seu crédito. Nada mais poderá fazer o ente público para eximir-se do pagamento do débito, que já é líquido e certo. Não há mais controvérsia. Não há, pois, objeto a ser conciliado.
Noutro giro, valendo-se da situação desvantajosa narrada acima – de não poder mais discutir o pagamento da dívida – é comum que o ente público, por seu gestor, procure o trabalhador para celebrar um aparente acordo, que vantagem alguma costuma trazer ao titular do crédito principal; pelo contrário, geralmente diminui-lhe bastante o valor a que originalmente teria direito, e que inevitavelmente iria receber, com atualização. Em qualquer transação, hão de existir vantagens e concessões recíprocas, o que não ocorre aqui. O exequente, quase sempre, receberá algo bem inferior ao que lhe seria pago se aguardasse sua vez na ordem, unicamente em troca da agilidade no procedimento de pagamento, cuja demora, ao fim e ao cabo, é imputável ao próprio ente público, que não honra suas dívidas no prazo constitucional. A vagareza é inerente ao sistema, e não é superada com o acordo em sede de precatório, a uma, porque a conciliação também deve seguir, como já estudado, a ordem cronológica (a não ser que se concilie com todos de uma vez); e, a duas, e principalmente, porque o pagamento do valor acordado geralmente dá em múltiplas parcelas, estendendo-se também por meses ou mesmo anos.
Imagine-se o trabalhador que, ao fim do mês laborado com sangue, suor e lágrimas, dirige-se ao banco para, na boca do caixa, sacar seu dinheiro. Lá, o assalariado terá de enfrentar uma enorme fila, que não o deixará sair dali antes de duas horas de espera. A demora é inerente à estrutura de que dispõe o banco, e à própria demanda. No entanto, o mesmo banco fornece um serviço especial em que o trabalhador poderá receber seu dinheiro em quinze minutos (prazo mágico concedido por leis locais a quem enfrenta uma fila bancária), desde que deixe, porém, a metade do valor em favor da instituição financeira. Com essa metáfora, entendemos que vantagem alguma, portanto, a nosso ver, persiste para o trabalhador nesta tal conciliação em sede de precatório. Vantagem há, isto sim, para o ente público. Aliás, nesta constatação reside o principal argumento de quem defende a Fazenda: que se trata de dinheiro público. Com este mesmo pensar, então, dever-se-ia ter procurado a conciliação durante as fases processuais. A nosso sentir, conciliação desta natureza favorece apenas a que os entes públicos tirem vantagens da própria fraqueza de um sistema que já lhes é vantajoso.
No entanto, por questão de política judiciária, fica o presidente de qualquer tribunal em situação difícil, se optar por arvorar o entendimento ora exposto. Os tribunais superiores e, principalmente, os conselhos recém-nascidos (e já tão superestimados) na história jurídica nacional têm orientado (orientação é eufemismo que se usa em substituição à palavra determinação, pois parecem os tribunais ter esquecido de que o art. 96 da Constituição lhes atribui autonomia) a instalação de juízos conciliadores de precatórios, ou centrais de conciliação de precatórios, ou núcleos de conciliação de precatórios, etc., como meta a ser observada.
Há, ainda, outras observações negativas, como o fato (o qual, como temos observado na prática, acontece sempre) de o ente público não providenciar o recolhimento dos tributos devidos. Posto que o pagamento do acordo não se resume ao crédito do obreiro e aos honorários de seu advogado, ao fim, sobra para o Judiciário e suas secretarias verificar tudo o que foi pago, e o que deixou de sê-lo, notificando-se o ente público para juntar comprovantes, etc., em análise e procedimento que costuma ser mais trabalhoso do que seria se o precatório houvesse sido pago diretamente pela Justiça. Ademais, há a questão de que, não raro a conciliação só é celebrada por motivo de parentesco, relações de apadrinhamento ou coleguismo, ou simpatia político-partidária havida entre o gestor e o trabalhador, como já comentado – fato ao que o Judiciário deve estar atento.
Por todas essas razões, não damos crédito a tais conciliações, que não trazem vantagem ao obreiro, nem, de regra, costumam facilitar o trabalho judiciário. No entanto, por razões de política judiciária, estando em ordem o acordo, este costuma ser homologado.
A maioria dos autores[9] fala em possibilidade de três ordens cronológicas: a regular; a alimentar, e a preferencial. A primeira, por razões óbvias, não existe na Justiça do Trabalho. Portanto, para nós, pelas mesmas óbvias razões, a alimentar é a ordem cronológica comum. Esta, porém, pode ser suplantada pela preferencial.
Ab initio, vejamos o que diz Américo Luís Martins da Silva (2011, pp. 217-8):
A cláusula expletiva inicial do §§1º e 2º do art. 100 da Constituição de 1988, com redação dada pela EC 62/2009, ressalva os créditos de natureza alimentícia comuns (aqueles decorrentes de salários, vencimentos …) e os créditos de natureza alimentícia excepcionais (…) e, segundo interpretação dominante, criou uma ordem paralela para os créditos de natureza alimentícia comuns e outra ordem paralela para créditos de natureza alimentícia excepcionais, agora dotados de preferência por categoria.
Observe-se: não é que exista mais de uma ordem cronológica, embora, na prática, tenha-se essa impressão, e a doutrina assim considere. Na verdade, para os que têm pouco a receber, essa impressão é real, vez que os preferenciais – assim entendidos os de idade igual ou superior a sessenta anos, ou portadores de doença grave (CF, art. 100, §2º) – com crédito até certo valor, recebem sempre em adiantamento aos não-preferenciais. Para os que têm maiores valores a receber, porém, apenas por um tempo ficarão em vantagem. Depois, retornarão à ordem comum.
Um exemplo prático pode explicar todas as questões referentes ao tema.
Imagine-se uma lista com cinco precatórios: a) o primeiro, atinente a João, de 35 anos; b) o segundo, relativo a José e Maria – aquele com 60 anos recém-completados; esta, com 55 anos – cada qual com cerca de R$10.000,00 a receber; c) o terceiro, relativo a Joaquim, de 75 anos, falecido, cujo filho, Antônio, pleiteou habilitação no processo; d) o quarto, atinente a Carlos, de 25 anos, que pediu preferência por problemas financeiros sérios, devidamente comprovados nos autos; e) o quinto e último, relativo a Francisco, portador de doença grave, com R$50.000,00 a receber.
Cuidando-se de Justiça do Trabalho, só há ordem comum e preferencial (não há que se falar em ordem não-alimentar e alimentar, pois, aqui, em tese, só se executa salário). A ordem cronológica alimentar, para a Justiça do Trabalho, frisamos, é a comum. Há que se diferenciar apenas o que é preferencial do que não é, e, no exemplo acima, são preferenciais apenas José, do segundo precatório, e Francisco, do último.
Conforme já visto neste estudo, a ordem cronológica de apresentação dos precatórios é o calcanhar de Aquiles do instituto. Qualquer interpretação no sentido de possibilitar sua violação ou alteração deve ser feita restritivamente.
A Constituição Federal só previu que os precatórios alimentares devem ser pagos em antecipação aos não-alimentares, e, sobre os primeiros, devem ser pagos os preferenciais. Esqueçamos os não-alimentares, que não existem na Justiça do Trabalho. Temos, assim, uma ordem alimentar (que é a comum) e, insertos nesta ordem, os exequentes que podem ser identificados como preferenciais. Estes são os de idade igual ou superior a sessenta anos, e os portadores de enfermidade grave. Se o exequente comprova uma dessas condições, fica acobertado pela condição de preferencial, o que não significará, que deverá deixar a ordem cronológica para compor uma outra, em que receberá todo o crédito.
Seguindo-se a ordem inicial, o pagamento deveria contemplar, cronologicamente, João, José e Maria, Joaquim (por ele recebendo Antônio), Carlos e Francisco. No entanto, tem-se José e Francisco, que preenchem a condição de preferenciais: o primeiro pelo fator idade; o segundo, pelo fator enfermidade, tendo sido o direito ao pagamento preferencial dos dois exequentes já reconhecido pelo Juízo.
Neste caso concreto, a verba alocada pelo ente público (repasse, ou sequestro parcelado) deverá ser direcionada para o pagamento dos preferenciais, antes dos demais. Se o ente público repassa, digamos, R$15.000,00 ao mês, este valor quitará o crédito de José, e o restante já será alocado para o pagamento de Francisco, que poderá, a critério do tribunal, receber parte no mês corrente, e o restante no mês seguinte. Apesar de constar do mesmo precatório, Maria, litisconsorte de José, não receberá ao tempo deste, pois não preenche a condição de preferencial (na metodologia preconizada pelo CNJ, preferencial seria todo o precatório, desde que observada a orientação de se expedir um precatório para cada exequente, o que, na prática, dá no mesmo). Maria, assim, permanece na ordem comum, atrás de João e à frente de Joaquim e Carlos.
Francisco, por sua vez, receberá, também à frente de todos os outros, seu dinheiro (entre José e Francisco não há preferência; a ordem de pagamento será feita conforme a data em que cada um teve o direito ao pagamento preferencial deferido, ou, supondo-se na mesma data, pela ordem em que seu precatório figura na lista). Ocorre que Francisco tem R$50.000,00 a receber, mas o pagamento preferencial de que trata a Constituição Federal tem limite: “até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo”. Ou seja, até três vezes o valor do maior pagamento feito pelo regime geral previdenciário. Acima disto, diz o mesmo art. 100, §2º, o valor “será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório.”
Observe, portanto, que a afirmação de que se formam duas ordens cronológicas não é correta. Cuida-se apenas de uma constatação comparativa que pode ou não estar presente, na prática. No caso de José, a afirmação, embora juridicamente incorreta, foi materializada, na prática. Mas o mesmo não ocorrerá com Francisco, que receberá preferencialmente apenas R$11.748,60[10]. Como o valor que tem a receber é mais alto, o restante de seu crédito lhe será pago conforme a ordem cronológica comum – que, na verdade, como agora já se sabe, é a única existente.
A grande quantidade de exequentes preferenciais presentes na ordem cronológica, porém (infeliz realidade de vários entes públicos devedores no Brasil, mormente com a demora de anos e anos de tramitação processual), é que pode configurar, na prática, o efeito que teria a formação de duas ordens cronológicas, desde o início. No âmbito do TRT22, por exemplo, são tantos os exequentes em fila contra o Estado do Piauí, que, centenas deles, com o passar dos anos, vão atingindo os sessenta anos de idade, passando a receber preferencialmente. Como, na prática, os não-preferenciais não recebem até que os preferenciais sejam quitados, ou recebam sua antecipação, diz-se que há duas ordens cronológicas. Juridicamente, essa afirmação não é correta. Apenas poderá ou não ocorrer, na prática, este efeito. Aliás, este pensamento dá margem a irresignação por parte dos exequentes não-preferenciais e seus advogados, ao argumento de que a lista cronológica fica travada. Não fica, exatamente porque a lista, a rigor, é uma só. Há, apenas, além dos comuns, os exequentes que são preferenciais, mas que não deixam sua posição na fila, apenas dela sendo removidos se, em face do direito ao pagamento preferencial, tiverem seus créditos inteiramente quitados. No exemplo dado, foi o caso de José, mas não o de Francisco. O primeiro, ao ser pago, terá sido excluído da lista. O segundo, por receber apenas parte de seu crédito, continuará ocupando a mesma posição na mesma. Em ambos os casos, indene de dúvidas, a fila está sendo observada e movimentada.
Não vigora a tese de que a idade há de ser aferida apenas na data de expedição do precatório, como defendem alguns entes públicos. Apesar de o §2º do art. 100 trazer essa redação, a norma que regulamenta o referido dispositivo é o art. 12 da Res. n. 115/2010 do CNJ, que, claramente dispõe: “(…) sendo também considerados idosos, após tal data, os credores originários de precatórios alimentares que contarem com 60 (sessenta) anos de idade ou mais, na data do requerimento expresso de sua condição, e que tenham requerido o benefício”. Ora, os direitos dispostos na Constituição Federal não excluem outros, mais abrangentes, previstos na legislação regulamentadora e decorrentes do regime democrático.
Voltando ao exemplo acima, o leitor pode se perguntar: e quanto a Joaquim, que tinha idade inclusive superior à de José? De início, tal constatação é irrelevante. Os preferenciais serão pagos conforme a data de reconhecimento de seu direito pelo presidente do Tribunal, ou, se na mesma data, por sua posição na fila. Ademais, o caso de Joaquim reporta-se à questão da interpretação restritiva que já se comentou. O direito ao pagamento preferencial há de ser entendido como direito personalíssimo. Como Joaquim é falecido, seu filho, Antônio, embora regularmente habilitado nos autos para receber o crédito do pai, não pode usufruir da condição de preferencial. Nem poderá jamais, a nosso sentir, pois o precatório em questão era de seu pai, e não dele. Preferencial é o titular do crédito, não o consorte, genitor, filho, ou herdeiro, por mais que nos compadeçamos com a condição de saúde ou situação financeira da família. Esta a mesma razão pela qual a pretensão de Carlos deve ser rejeitada.
Assim, receberão seus créditos os exequentes da ordem cronológica fictícia apresentada acima: 1º) José, integralmente; 2º) Francisco, em parte; 3º) João; 4º) Maria; 5º) Joaquim (pelo herdeiro habilitado); 6º) Carlos; 7º) Francisco (a parte restante).
Quanto ao exequente portador de doença grave, é importante ainda tecer comentário sobre o art. 13 da Res. n. 115/CNJ. Este dispositivo relaciona as enfermidades que hão de ser consideradas graves (que, por sua vez, é derivado do rol disposto na legislação do imposto de renda). No entanto, no exercício das funções, no âmbito do TRT22, temos nos deparado com exequentes cuja condição de saúde permite concluir pela existência de prognóstico tão grave quanto aquele presente nas doenças citadas na lei e no regulamento[11]. Isto porque um doente portador de neoplasia maligna tratada precocemente pode ter uma qualidade de vida – senão idêntica à de uma pessoa sã – muito melhor do que aquele que padeça de artrose avançada, por exemplo, com impossibilidade de locomoção e fortes dores articulares – doença que não consta da lista legal e regulamentar. Há que se buscar, portanto, a mens legis, no sentido de que o fator primordial a ser considerado é a expectativa de vida daquele que, por anos, procurou receber um crédito salarial que nunca lhe foi honrado.
Observe-se também que a feitura de sequestro correspondente ao valor integral dos precatórios vencidos – se isto for possível, nos moldes do que foi explicado no item 3 – torna todas estas questões irrelevantes, posto que, se o sequestro for integral, todos os exequentes com crédito vencido, preferenciais ou não, poderão ser pagos ao mesmo tempo. Haverá dinheiro para pagar a todos.
No entanto, sequestro dessa natureza é absolutamente não-recomendável e, na imensa maioria das vezes, até impossível de ser feito. O ideal é que se estabeleça um repasse (cujo berço pode ser um acordo entre o Tribunal e o ente público, ou a mera fixação, de ofício, do sequestro mensal) para pagamento dos precatórios vencidos, dentro das possibilidades do ente devedor. Além de procedimento mais sensato, só dentro desta possibilidade se vislumbra a qualificação do exequente como preferencial ou não, pela Constituição Federal.
A terceira maneira de que se pode utilizar o exequente, no sentido de perceber mais rapidamente seu crédito, é renunciando ao valor que ultrapassar o limite estabelecido legalmente para pagamento por RPV. Se o fizer, o rito será outro e seu precatório, via de consequencia, será excluído da ordem cronológica para ser enviado à Vara de origem.
Várias observações, entrementes, precisam ser desenvolvidas, neste tópico.
A maioria dos advogados não compreende o tema em sua plenitude, e, indiscriminadamente, protocoliza petições de renúncia, em favor e em nome de seus constituintes, para que venham – estes e aqueles – a receber seus créditos de forma mais rápida. Há, porém, de se esclarecer a forma e o conteúdo em que essa renúncia pode ser feita.
Quanto à forma, geralmente os patronos dispõem de poderes para confessar, desistir, transigir, firmar compromisso, receber citação e intimação, receber e dar quitação, etc.; enfim: todos os poderes que relaciona o art. 38, CPC. Todos, menos um: o de renunciar ao direito sobre que se funda a ação. Este último geralmente não está expresso na procuração outorgada. E, sem ele, não pode o patrono atravessar petição na qual, pelo exequente, renuncie à parte do crédito deste. Tal renúncia há de ser formulada pelo próprio trabalhador, firmando declaração de próprio punho nesse sentido. Não cabe defender a tese de que quem pode o mais, pode o menos (tomando-se o mais pelo poder de desistir do processo), porque o CPC fez distinção entre os institutos (art. 38). A petição de renúncia deve, pois, ser firmada pelo exequente, além do advogado, ou só pelo primeiro (considerando o jus postulandi da Justiça do Trabalho), salvo se o causídico detiver poderes para renunciar ao crédito obreiro, por este.
Quanto ao conteúdo, reside aqui o maior problema, em regra causado pela falta de conhecimento da matéria, o que termina por prejudicar o próprio exequente.
Vejamos o que diz a Constituição, em seu art. 100, §§3º-4º, com redação conferida pela EC 62/2009, verbis:
§ 3º. O disposto no caput deste artigo relativamente à expedição de precatórios não se aplica aos pagamentos de obrigações definidas em leis como de pequeno valor que as Fazendas referidas devam fazer em virtude de sentença judicial transitada em julgado.
§ 4º. Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser fixados, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas, sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social.
Para pleitear, portanto, a adequação ao rito da RPV, o exequente (entenda-se: seu advogado, que é quem detém o conhecimento técnico para fazê-lo) deve avaliar se o risco-benefício entre a demora que ocorreria para o recebimento do crédito, na fila dos precatórios, e o crédito de que se está abrindo mão, é compensável, aceitável. Se entender que é, certamente o valor que o exequente tem a receber não é muito maior do aquele que é tomado por limite, no procedimento da RPV.
O problema é que se pensa que, por RPV, deve-se executar apenas o crédito que não ultrapasse o valor do maior benefício previdenciário pago no regime geral. Esta é uma regra. Nem sempre este é o limite. Há os municípios que até hoje – já no terceiro ano de vigência da emenda – estão inertes – e, no Estado do Piauí, são a maioria – no sentido de editar sua nova lei definidora de pequeno valor. Contraditoriamente, o que deveria ser excepcional tornou-se regra. O fato da indolência, em particular, atrai a incidência, não dos parágrafos acima, mas do §12 do art. 97 do ADCT (também incluído pela emenda nova), litteris:
§ 12. Se a lei a que se refere o § 4º do art. 100 não estiver publicada em até 180 (cento e oitenta) dias, contados da data de publicação desta Emenda Constitucional, será considerado, para os fins referidos, em relação a Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, omissos na regulamentação, o valor de:
I – 40 (quarenta) salários mínimos para Estados e para o Distrito Federal;
II – 30 (trinta) salários mínimos para Municípios.
O que verificamos diariamente em nosso mister, na análise processual dos precatórios em trâmite no TRT22, são formulações generalizadas de renúncia de valores em relação aos quais não precisaria ter havido renúncia alguma. São exequentes com créditos de dez ou quinze mil reais a receber, renunciando a soma considerável de seu dinheiro, em petições absolutamente desnecessárias, formuladas por seus patronos, contra municípios que nunca editaram a nova lei[12].
Municípios tais são executáveis mediante RPV, até a soma, em valores de hoje, de R$18.660,00[13]. Infelizmente, trabalhadores humildes são prejudicados pela pura falta de conhecimento de seus advogados. Conhecimento simples, oriundo da só leitura da emenda. Diante de pedido como este, o Judiciário, pelo dever de imparcialidade, não podendo tomar partido pela parte, nem “corrigir” o pleito com o deferimento de algo que não se pediu, nada pode fazer. Defere-se a renúncia, com baixa dos precatórios nos registros do Tribunal, e encaminhamento dos autos respectivos à Vara, para que requisite o pequeno valor que ficou.
Há, nesta senda, o outro lado da mesma questão: o dos municípios que, porventura, tenham editado nova lei mais benéfica do que o texto constitucional (é difícil, sabemos), ou cuja lei antiga tenha permanecido, por manifesta receptividade com o novo texto conferido pela emenda. No caso do Tribunal trabalhista piauiense, podemos citar, sob sua jurisdição, o Município de Teresina, capital do Estado. A antiga lei de RPV do Município de Teresina falava em 7 (sete) salários-mínimos. Ora, tal lei continua em pleno vigor (Lei municipal n. 3.871, de 05 de junho de 2009), porque sete salários ultrapassam o patamar mínimo fixado constitucionalmente para a RPV[14]. Para estes casos, a formulação indiscriminada dessas renúncias também termina por prejudicar os trabalhadores.
Do outro lado da moeda, os entes públicos, intimados para se manifestar sobre o pleito, costumeiramente nada pedem. Suas assessorias, também desconhecendo o assunto, não atentam para o fato de que haveria de se verificar se o pedido do exequente, de ver seu crédito pago por RPV – procedimento que é mais pesaroso ao devedor – poderia ser concedido, no caso concreto.
Há tribunais que aplicam in continenti a EC 62 aos processos em curso, na fase em que se encontrarem, no que concerne aos novos parâmetros da RPV. Entendemos, porém, que certas especificidades influem no que se deva entender por aplicação imediata de regramento processual.
O Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, bem assim o Tribunal Superior do Trabalho, tem adotado como marco referencial temporal a incidirem as novas normas o momento do ato que dá início à execução, ou seja, o momento da citação. Ao menos em teoria, é com a citação que o ente público toma ciência do montante do crédito que deve e, via de consequencia, do rito que será aplicado, ad futurum, à execução deste. Proveniente do TST, colaciona-se o julgado abaixo:
“EMBARGOS – DISPENSA DE PRECATÓRIO – ART. 100, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – DEFINIÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE PEQUENO VALOR – LEI ESTADUAL – APLICABILIDADE. Esta C. SBDI-1 já se pronunciou no sentido de que a lei estadual que define as obrigações de pequeno valor, para fins de aplicação do § 3º do art. 100 da Constituição, somente se aplica aos créditos apurados posteriormente à sua vigência. Assim, não há como divisar ofensa ao art. 100, § 3º, da Constituição, porquanto foram observados os critérios preconizados na legislação então vigente para a caracterização da obrigação de pequeno valor. (…). Embargos não conhecidos” (TST-E-ED-RR-5323300-41.2002.5.22.0900. Relatora Ministra MARIA CRISTINA IRIGOYEN PEDUZZI. DJ 02/05/2008).
Portanto, ao deixar de se manifestar quando o contraditório lhe é conferido, o ente público perde a oportunidade de, discutindo o tema, provocar a manutenção do crédito na fila do precatório, seja porque fora citado antes do advento da EC 62/2009 – não sendo o caso, portanto, de se lhe aplicar as novas regras, quando vigorava sua antiga lei de RPV – seja porque citado antes mesmo da EC 30/2000, que criou o pequeno valor. Recordemos, aliás, que, depois de criado, o instituto só encontrou regulamentação dois anos depois, com a EC 37/2002, que incluiu o art. 87 no ADCT. Antes desta emenda, só havia regulamentação para União como devedora (Lei 10.259/2001). Percebamos, com mais este indício, como as normas de rito não podem ser cega e imediatamente aplicadas.
Enfim, renunciando o exequente a parte de seu crédito, para ficar com o valor do maior benefício previdenciário do regime geral, abre-se o contraditório ao ente público. Como, na imensa maioria das vezes, este não se manifesta, o Juízo nada poderá fazer, a não ser deferir esta renúncia, sem investigar se está ou não tecnicamente correta. Perde o exequente, que abre mão gratuita e desnecessariamente de um crédito seu, e perde o ente público, em grande parte das situações, mormente em se tratando de precatório antigo, pois não provoca a discussão do conflito das normas no tempo. Muitas vezes, à época da citação, estava em vigor a lei local antiga, que estipulava como RPV a monta de um ou dois salários, apenas. Como não é provocado, o Juízo não pode analisar a matéria. Caso o fizesse, configurar-se-ia ausência de parcialidade, e mesmo violação ao princípio da inércia da jurisdição.
Este tipo de situação fático-processual, infelizmente, é de frequência quase diárias.
Tema simples, mas com relação ao qual a categoria costuma melindrar-se.
Todos sabemos que são dois os tipos de honorários advocatícios: sucumbenciais e contratuais. Os primeiros são fixados pelo Juízo cognitivo, para o processo. Os segundos são reconhecíveis pelo Juízo presidencial (ou mesmo pelo a quo), para cada profissional. Aqueles não compreendem, a priori, direito do advogado, podendo ou não constituir parcela da condenação. Estes, uma vez celebrado contrato, são direito líquido e certo do patrono, previsto em lei, e são pagos pelo constituinte, trabalhador.
Pela própria natureza de cada um, é fácil notar que os honorários advocatícios sucumbenciais, fixados pelo juiz conforme os percentuais estabelecidos em lei, diretamente no título executivo – e, portanto, para o processo, como parcela da condenação do reclamado – serão um só, e hão de ser rateados por tantos quantos forem os advogados atuantes em prol da causa obreira.
Já os honorários contratuais não fazem parte do título executivo (não podendo, assim, ser objeto de recurso), não são suportados pelo executado, mas pelo próprio hipossuficiente, não são rateáveis pelo número de advogados trabalhistas, mas, isto sim, cabíveis para cada um deles, e, por fim, atraem a incidência de normas estranhas ao aspecto protetivo do Direito do Trabalho, como as do Código Civil.
Claro está que os honorários contratuais merecem uma atenção especial do Juízo, mormente na Justiça do Trabalho, onde o reclamante é hipossuficiente, do ponto de vista material e intelectual. Muitas vezes, por achar que o processo não está tramitando como deveria, o obreiro contrata mais de um advogado (já analisamos processos em que foram três os escritórios contratados!). Cada advogado, por sua vez, celebra com o trabalhador o contrato de prestação de serviços advocatícios, no que não está agindo mal, pelo contrário. Surpreso ficará o reclamante, quando receber o que restar de seu crédito.
A Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), art. 22, §4º, dispõe que “se o advogado fizer juntar aos autos o seu contrato de honorários antes de expedir-se o mandado de levantamento ou precatório, o juiz deve determinar que lhe sejam pagos diretamente, por dedução da quantia a ser recebida pelo constituinte (…)”. Assim, é indiscutível que o advogado tem direito ao recebimento de seus créditos contratuais, tão logo junte aos autos o contrato respectivo. Assim o fazendo, o próprio Juízo, no ato do pagamento do precatório, reterá, do crédito de cada exequente que tenha firmado o contrato, o percentual ali previsto.
Contudo, é comum o contrato em que são estipulados honorários em percentuais de 30%, 35%, 40% do crédito obreiro. Já tivemos oportunidade de analisar contratos em que o percentual ali estabelecido era de 50%, tal qual fosse a reclamação trabalhista uma aventura empresarial, e o causídico o sócio do obreiro. Cabe ao Juízo, nestes casos, modular o percentual ajustado.
Uma pausa. Falemos antes dos sucumbenciais.
Os honorários sucumbenciais estão previstos em dois diplomas legais: nenhum deles específico para o processo do trabalho. Tem-se a previsão do CPC (art. 20, §3º), segundo o qual os honorários serão fixados entre o mínimo de dez por cento (10%) e o máximo de vinte por cento (20%) sobre o valor da condenação, e a previsão da Lei 1.060/50 (art. 11, §1º), pela qual os honorários do advogado serão arbitrados pelo juiz até o máximo de 15% (quinze por cento) sobre o líquido apurado na execução da sentença. A CLT nada fala sobre o tema. Apenas afirma “o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho” (art. 769).
A Lei 1.060/50, conquanto trate da assistência judiciária gratuita, não é lei específica para o processo trabalhista, muito embora faça crer assim o TST e sua jurisprudência, às vezes, medonha. A referida lei apenas “aproveitou o embalo” e tratou, em seu corpo, de outro assunto, fixando o percentual máximo devido a título de honorários sucumbenciais. O CPC, que é de 1973, por sua vez, fixou-os em outros percentuais, mais favoráveis ao advogado. O CPC é lei genérica, e de aplicação subsidiária no processo do trabalho, como o é a Lei 1.060/50. No entanto, sendo esta a mais antiga, restou revogada pelo código, neste tema.
Contudo, continua-se aplicando a lei revogada, escudada na monstruosa Súmula 219 do TST; este, a despeito de uma nova Constituição em 1988, ainda editou uma outra súmula apenas para dizer que a anterior continuava em vigor.
Não é pretensão deste estudo discutir o tema dos honorários sucumbenciais em si. Coloca-se a matéria apenas para esclarecer que os honorários sucumbenciais têm como parâmetro os percentuais de 10% a 20%, pelo CPC, utilizando-se os juízes do trabalho, via de regra, e erroneamente, dos percentuais de 5%, 10% ou 15%, em face da Lei 1.060/50.
Voltemos aos contratuais.
O CPC, ao fixar os percentuais citados para os sucumbenciais, confere ao Juízo certos parâmetros, para que este, entre o mínimo e o máximo, fixe o percentual que entender mais adequado ao caso concreto. Os parâmetros norteadores conferidos pelo CPC são (art. 20, §3º, alíneas):
a) o grau de zelo do profissional;
b) o lugar de prestação do serviço;
c) a natureza e importância da causa, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço
Já o Código de Ética da Advocacia, que é dirigido, não ao Juízo, mas aos próprios profissionais, estabelece, para a fixação de seus honorários (contratuais, evidentemente):
Art. 36. Os honorários profissionais devem ser fixados com moderação, atendidos os elementos seguintes:
I – a relevância, o vulto, a complexidade e a dificuldade das questões versadas;
II – o trabalho e o tempo necessários;
III – a possibilidade de ficar o advogado impedido de intervir em outros casos, ou de se desavir com outros clientes ou terceiros;
IV – o valor da causa, a condição econômica do cliente e o proveito para ele resultante do serviço profissional;
V – o caráter da intervenção, conforme se trate de serviço a cliente avulso, habitual ou permanente;
VI – o lugar da prestação dos serviços, fora ou não do domicílio do advogado;
VII – a competência e o renome do profissional;
VIII – a praxe do foro sobre trabalhos análogos.
O Código de Ética não define percentual. Observe-se, porém, que os parâmetros por ele estabelecidos, embora mais detalhados, são similares aos do CPC, que limita os sucumbenciais ao moderado percentual de 20%. O instrumento de contrato deveria, portanto, norteado por estes mesmos critérios (aos quais deve o profissional observância), limitar-se também ao percentual de 20%.
É absurdo, mormente na Justiça do Trabalho, advogar a ideia de que o Juízo não poderia se imiscuir na relação civil advogado-cliente. No cliente que o advogado vê, a Justiça obreira enxerga um trabalhador, a quem foi incumbida de proteger, por sua própria finalidade institucional. Além do mais, se é para atrair normas do Código Civil ao contrato em comento, que não se esqueça de seu art. 421, segundo o qual “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”. O próprio Código de Ética pede ao advogado que observe o valor da causa e a condição econômica do cliente.
Infelizmente, não pode o profissional, movido pela injustiça que de fato existe em não poder receber seus honorários sucumbenciais, extrapolar na fixação dos contratuais. Se outros tribunais, ou outros ramos judiciários, não o fazem, no âmbito do TRT22, esse percentual, quando superior, é sempre modulado ao limite máximo de 20%.
Noutro giro, tanto os sucumbenciais quanto os contratuais são pagos ao final. Primeiramente, todo o dinheiro é utilizado para quitar os trabalhadores. Apenas ao final, pagam-se os honorários e recolhem-se os tributos. Após, passa-se ao pagamento do precatório seguinte. E, com isso, chega-se a outro debate: o que diz respeito à possibilidade de serem ou não os honorários pagáveis separadamente do crédito obreiro, em outra ordem, ou por RPV.
O crédito principal da reclamação trabalhista é o do trabalhador. Tudo o mais que orbitar em torno deste, independentemente do valor numérico, é acessório. Accessorium sequitur suum principale.
Há uma série de argumentos que, intentando afastar o velho princípio civilista, objetivam justificar o pagamento em apartado, por RPV – como a tese de que o titular de uma e de outra parcela são diferenciados – ou tornar simultâneo o pagamento da verba honorária com os créditos da “ordem alimentar” – por ter a verba honorária esta mesma natureza. Nada disso, em nossa opinião, é possível, pelo próprio princípio em comento, que continua vigente, embora não expressamente previsto no novo código.
Recentemente, o CNJ corroborou nosso entendimento, ao reconhecer que o crédito do advogado, inobstante tenha natureza alimentar, não pode ser pago em “outra ordem”, sob pena de prejudicar o pagamento dos principais credores, nem pode ser pago, separadamente, por RPV. Segundo o CNJ, “não obstante seu caráter alimentício, os honorários não poderão influenciar a ordem de pagamento dos precatórios se tiverem natureza acessória, ou seja, o caráter alimentício dos honorários de sucumbência não pode servir para lhes dar preferência no pagamento se guardam uma relação de acessoriedade com uma dívida principal que não seja preferencial”[15].
Em todo o caso, a matéria ainda está sendo debatida no STF, nos autos do RE 564.132[16].
Cuida-se de outra questão prática do procedimento precatorial, que outrora costumava causar dúvidas a servidores e advogados, no âmbito do TRT22.
A obrigação de depositar o FGTS é obrigação de fazer infungível, posto que só o empregador pode efetivar o procedimento junto à conta vinculada do empregado e ao órgão competente. Sem contar com a necessária vontade do ente público, não é possível exigir-lhe o cumprimento do ato. Tanto é assim que o Código Civil impõe a indenização como compensação pelo não cumprimento da obrigação de fazer, conforme art. 247, verbis: “incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível.”
Até o final de 2010, nosso Tribunal acumulava dezenas de precatórios que estavam pendentes de arquivamento, por sobejar nos autos o FGTS a recolher. Como se trata de obrigação imputável legalmente apenas ao empregador, não poderia o Tribunal oficiar à Caixa Econômica Federal para que o fizesse, de ofício. Nem os entes públicos, evidentemente, tinham qualquer interesse em fazê-lo. Tratava-se de uma causa definitivamente julgada, e de um dinheiro que eles já haviam perdido para o Tribunal, mediante sequestro. O Tribunal que se virasse, portanto.
Essa incúria do ente público tem origem nas sentenças. Os juízes se esquecem (ou simplesmente desconhecem) de atrelar as necessárias astreintes à obrigação de fazer, o que leva o executado a descumprir suas decisões. No que se refere à obligatio faciendi, não há como ter a decisão alcance sobre o condenado. Não existe, no Direito brasileiro, norma que obrigue alguém a cumprir, manu militari, obrigação de fazer. A indenização, até se poderia entender, deve ser pleiteada pelo autor, na petição inicial (CPC, art. 287), mas a multa cominatória pode (e deve) ser fixada de ofício pelo juiz (CPC, art. 461, caput e §2º). Toda obrigação de fazer (reintegração, anotação de CTPS, depósito de FGTS, etc.), a teor dos artigos citados, resolve-se, quando descumprida, em obrigação de pagar.
Evidentemente, não compete a presidência de tribunal, em sede de precatório, fixar multas ao executado, como forma de compelir-lhe a cumprir a obrigação de fazer. Estas multas devem constar do título executivo. O fato é que, como se depreende do Código Civil, a obrigação de fazer infungível, quando inadimplida, transmuda-se em obrigação de pagar. Como, no ato do pagamento do precatório, o crédito do reclamante está liquidado, em não efetuando o ente público o depósito na conta vinculada do trabalhador (nem podendo o Tribunal fazê-lo), o FGTS termina por ser liberado ao titular do direito, perfazendo-se doravante a obrigação de pagar, em que se converte a de fazer, ainda que sem a multa que deveria ter sido cominada no título, ou a indenização que o autor não pediu.
Sobre a matéria, o TST já proferiu o seguinte entendimento:
“(…) Apesar de o artigo 20, I, da Lei 8.036/90 autorizar a movimentação da conta vinculada do trabalhador na hipótese de dispensa sem justa causa, tal dispositivo legal não autoriza que os valores dos depósitos do FGTS decorrentes da condenação judicial sejam pagos diretamente ao empregado, pois as ações trabalhistas que envolvem recolhimentos fundiários englobam direitos não só do trabalhador, mas também do órgão gestor do FGTS, relativamente à multa pelo atraso nos recolhimentos, razão pela qual o depósito na conta vinculada deve ser observado” (Proc. TST-RR 102741-38.1999.5.04.0028. 6ª. T. Relator Min. Augusto Cesar Leite de Carvalho. DJ 13/08/2010).
Ocorre que a inadimplência da obrigação de fazer transmuda-a em obrigação de pagar, acrescida da indenização ou astreinte respectiva. Não há no ordenamento jurídico norma que obrigue alguém a cumprir a própria obrigação de fazer coercitivamente. Neste contexto está a obrigação de depósito do FGTS, não podendo o trabalhador restar prejudicado, nem o precatório deixar de ser quitado, pela mora do devedor. E quanto ao órgão gestor do depósito, à luz do princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), nada impede que ajuíze a demanda necessária para pleitear o que bem entender.
Fica a observação de que esse procedimento é realizado como ato último na quitação do precatório, para não desconfigurar o caráter excepcional que tem a mutação da obrigação.
Com este tópico, finalizamos o presente estudo. Quiçá possa este artigo ter esclarecido algumas questões, para quem atua na área processual trabalhista, e, mais especificamente, na fase do precatório. Em breve, esperamos redigir uma continuação deste estudo, trazendo à baila outros temas interessantes, como o da novel Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT).
OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
SILVA, Américo Luís Martins da. Precatório-requisitório e Requisição de Pequeno Valor (RPV). 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
Notas
[1] Disponível em:
[2] “Necessidade não conhece princípio”. Konrad Hesse. Die Normative Kraft der Verfassung (A Força Normativa da Constituição). Porto Alegre: Editora Sérgio Antônio Fabris, 1991.
[3] No âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região, há regulamento (PGC n. 01/1006) que limita a cinco o número de litisconsortes na reclamação trabalhista plúrima. Assim, o litisconsórcio, via de regra, não torna complexo o pagamento do precatório. Mesmo assim, há precatórios mais antigos (anteriores a 2006) em trâmite no Tribunal que apresentam setenta, cem, cento e cinquenta exequentes. Neste caso, como os valores repassados mensalmente pelo ente público não são suficientes para pagar a todos, conjuntamente, organiza-se a ordem de pagamento, dentro do mesmo precatório, do menor para o maior valor, de modo que os obreiros que têm menos a receber sejam pagos primeiro. É um critério discricionário. Poder-se-ia considerar a ordem alfabética ou outro qualquer. Nestes precatórios plúrimos, os cálculos de pagamento, de fato, são mais complexos.
[4] Por interpretação do STF quanto ao art.12 do Decreto-Lei n. 509/69, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) tem status de Fazenda Pública, também no que concerne à quitação de suas dívidas, que são pagas mediante o sistema constitucional de precatório-RPV. Em 2003, o TST, em julgamento de Incidente de Uniformização de Jurisprudência, aderiu a esse entendimento, removendo, do texto de sua OJ n. 87 da SbDI-1, a palavra “ECT”. Leia-se a atual redação da OJ n. 87/SbDI-1 TST: “ENTIDADE PÚBLICA. EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE EMINENTEMENTE ECONÔMICA. EXECUÇÃO. ART. 883 DA CLT. É direta a execução contra a APPA e MINASCAIXA (§ 1º do art. 173, da CF/1988). Histórico: Alterado – DJ 24.11.03. IUJ-ROMS 652135/00, Tribunal Pleno. Em 06.11.03, o Tribunal Pleno decidiu, por maioria, excluir a referência à ECT da Orientação Jurisprudencial nº 87 da SBDI-1, por entender ser a execução contra ela feita por meio de precatório. Redação original: ‘(…) É direta a execução contra a APPA, Caixa Econômica do Estado do Rio Grande do Sul, ECT e MINASCAIXA’.”
[5] Américo Luís Martins da Silva relata, em sua obra (citada supra), a seguinte passagem: “(…) durante a vigência das Ordenações e até julho de 1934, quando entrou em vigor nova Constituição Federal, campeava no país, no tocante à execução das sentenças condenatórias da Fazenda Pública, o mais escandaloso dos abusos. Imperava, como lembra Pontes de Miranda, ‘uma das formas mais correntes da advocacia administrativa’. (…) um enxame de pessoas prestigiadas e ávidas do recebimento de comissões passava a rondar os corredores das repartições fiscais. (…) Esta [a verba], pelo poderio dos advogados administrativos, saía para os guichets de pagamento com designação dos beneficiários e alusão expressa aos seus casos. Com isso se infringia a precedência a que tinham direito titulares, sem melhor amparo, de pagamentos que se deviam ter realizado anteriormente”.
[6] Eis o teor do julgado: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 5.250/2002 DO ESTADO DO PIAUÍ. PRECATÓRIOS. OBRIGAÇÕES DE PEQUENO VALOR. CF, ART. 100, § 3º. ADCT, ART. 87. Possibilidade de fixação, pelos estados-membros, de valor referencial inferior ao do art. 87 do ADCT, com a redação dada pela Emenda Constitucional 37/2002. Ação direta julgada improcedente” (ADI 2868/PI. Relator Min. CARLOS BRITTO. Relator p/ Acórdão Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgto 02/06/2004. DJ 12/11/2004).
[7] Súmula 189/STJ: “É desnecessária a intervenção do Ministério Público nas execuções fiscais”.
[8] Com o julgamento da ADI 1662/SP (Relator Min. MAURÍCIO CORREA. Julgto 30/08/2001. DJ 11/09/2001), que declarou inconstitucional justamente a IN TST n. 11/1997, em seu inciso III e outro – que considerava a efetivação do sequestro quando do mero não pagamento do requisitório – o TST voltou atrás em seu entendimento (que era o correto), editando sua OJ n. 03/Pleno, em 2003, litteris: “O sequestro de verbas públicas para satisfação de precatórios trabalhistas só é admitido na hipótese de preterição do direito de precedência do credor, a ela não se equiparando as situações de não inclusão da despesa no orçamento ou de não-pagamento do precatório até o final do exercício, quando incluído no orçamento”.
[9] Alguns autores, a minoria, entendem que a Constituição quis deixar de fora do procedimento precatorial o pagamento dos créditos reputados alimentares, considerando, portanto, que tais créditos deveriam ser, pelo ente público, pagos por fora. Cuida-se de interpretação estapafúrdia. Sobre a dissidência, vide SILVA, op. cit., p. 217.
[10] Valor, na data da construção deste artigo, do maior benefício previdenciário pago pelo regime geral (R$3.916,20 – Portaria MPS/MF n. 02, de 06 de janeiro de 2012), multiplicado por 3.
[11] Solicitamos parecer do Serviço Médico oficial do Tribunal, em auxílio à Presidência, na análise dos documentos médicos apresentados pelos requerentes, sempre que necessário.
[12] Há quem defenda que, como a EC 62 conferiu o prazo de 180 dias para que Estados e municípios editassem sua nova lei definidora de pequeno valor (art. 97, §12, ADCT), a esta altura, passado aquele prazo, não poderiam mais fazê-lo. Soa tão absurda a tese, que, sinceramente, não encontramos a maior motivação para combatê-la. Quem assim pensa necessita volver às origens do estudo jurídico, voltar a ler obras básicas, como Ciência Política e Teoria Geral do Estado, mormente no que concerne aos princípios federativos, porque a nós nos parece como que um cientista matemático ou físico esquecer a tabuada.
[13] Valor, na data da construção deste artigo, do salário mínimo (R$622,00 – Dec. 7.655, de 23 de dezembro de 2011), multiplicado por 30.
[14] O valor de 7 (sete) salários-mínimos, na data da construção deste artigo, corresponde a R$4.354,00, superando o valor atual do maior benefício pago pelo regime geral previdenciário, de R$3.916,20 (que corresponde a 6,29 salários). Enquanto permanecer a superioridade, independentemente dos números em si, a lei municipal perdurará.
[15] Sobre isto, vide: Precatório de honorários não pode ser parcelado. Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2012. Disponível em:
[16] Até o momento, são 5 (cinco) os votos favoráveis ao pagamento dos honorários em separado, por RPV, e 1 (um) contra. O julgamento está suspenso desde 03/12/2008, quando pediu vista a então Min. Ellen Gracie, que se aposentou do Tribunal sem proferir seu voto. Eis trecho da ementa da sessão: “Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Eros Grau (Relator), negando provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos votos dos Senhores Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Carlos Britto, e o voto divergente do Senhor Ministro Cezar Peluso, pediu vista dos autos a Senhora Ministra Ellen Gracie.”
Fonte: www.jus.com.br