Gilberto Melo

A dificuldade e subjetividade na conceituação de fundo de comércio

Levando em conta que o conceito de fundo de comércio previsto noart. 1142 do Código Civilnos parece bastante simplista, bem como a importância dessa figura para o Direito Tributário, notadamente em razão da sucessão tributária (art. 133 do CTN), e da polêmica questão da fundamentação do ágio e deságio na aquisição de investimentos, interessou-nos aprofundar o estudo do tema.

Em razão disso, passamos a analisar esse termo, primeiramente com um breve viés histórico e, posteriormente, observando a sua utilização seja na doutrina, seja na jurisprudência.

1 – Fundo de comércio – Origem histórica

O termo fundo de comércio é uma criação da doutrina europeia, ocorrida por volta do século XIX. Sua consolidação veio na França, quando, em 28.2.1972, foi publicada lei fiscal estabelecendo a tributação sobre a mudança, a título oneroso, dofonds de commerce. Vale ressaltar que, na mesma época, a Itália, com ateoria da azienda, e a Alemanha, com ogerchäft, também começavam a aceitar o fundo de comércio. Na língua inglesa este termo recebeu o nome degoodwill. Deste então, todos os sistemas jurídicos começaram a considerar esse instituto, e, sobre ele, foram dedicados diversos estudos.

No Brasil, este termo apareceu pela primeira vez com a edição do Decreto-Lei nº 24.150, de 20.4.1934, o qual regulava as condições e processo de renovação de contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais ou industriais. Neste momento, válida a leitura de trecho da exposição de motivos deste decreto:

Considerando que a necessidade de regular as relações entre proprietários e inquilinos, por princípios uniformes e de equidade, se fez sentir universalmente, impondo, como impôs, aos povos da mais elevada educação jurídica, a instituição de leis especializadas;

Considerando que, se, de um modo geral, essa necessidade se impôs, mais ainda se torna impreterível, tendo em vista os estabelecimentos destinados ao comércio e à indústria, por isso que o valor incorpóreo do fundo de comércio – se integra, em parte, no valor do imóvel, trazendo, destarte, pelo trabalho alheio, benefícios ao proprietário;

Considerando, assim, que não seria justo atribuir exclusivamente ao proprietário tal quota de enriquecimento, em detrimento, ou melhor, com o empobrecimento do inquilino que criou o valor;” (grifos nossos)

Especificamente no texto da norma existe apenas a citação do instituto:

Art. 20 – O inquilino que, por motivo de condições melhores, não puder renovar o contracto de locação, terá direito a uma indemnização, na conformidade do direito commum, e, nomeadamente, para resarcimento dos prejuizos com que tiver de arcar em consequencia dos encargos da mudança, perda do lugar do commercio ou industria, e desvalorização do fundo de commercio.

Como visto, na primeira aparição do termo fundo de comércio na legislação brasileira, o legislador apenas deixa claro haver um valor incorpóreo inerente a este instituto, e que supera o valor do próprio imóvel, sem, contudo, explicar ou mesmo exemplificar o que seria esse valor.

Após essa aparição, outras normas também passaram a dispor sobre esse aspecto, mas permanecem ser dar uma conceituação ou definição para o termo, o que, portanto, fica a cargo da doutrina e da jurisprudência, e será objeto de estudo a seguir.

2 – Fundo de comércio visto sob o prisma do direito comercial

No Direito Comercial este tema é estudado de forma muito abrangente. A doutrina, conforme veremos, atacou todos os aspectos do estudo, chegando, hoje em dia, a uma posição praticamente uniforme.

Antes de entrar no mérito do estudo, imperioso destacar divergências sobre sua nomenclatura. O termo em estudo (fundo de comércio), na majoritária doutrina pátria, recebeu equivalência a estabelecimento comercial. Ou seja, para os doutrinadores brasileiros, estes termos seriam equivalentes.

Por outro lado, alguns autores internacionais entendem de forma diferente. Amador Paes de Almeida, em seu livro, cita Ercole Vidari, comercialista italiano, que entende que fundo de comércio representa o complexo do ativo e passivo, dos direitos e obrigações pertinentes a um negócio ou estabelecimento mercantil, ao passo que o estabelecimento representa o lugar onde o comerciante exercita o comércio e administra os seus negócios. (01)

Entretanto, conforme acima, são contrários à essa posição, os ilustres juristas Rubens Requião, Amador Paes de Almeida, Fabio de Ulhôa Canto, Carvalho de Mendonça, Nelson Nery Junior, dentre outros. Sobre essa divergência, apenas para afastar qualquer dúvida, válido destacar o que diz Miguel Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, ao argumentar sobre o Livro II – Atividade Comercial:

Dessarte, o tormentoso e jamais claramente determinado conceito de “ato de comércio” é substituído pelo de “empresa”, assim como a categoria de “fundo de comércio” cede lugar à estabelecimento.”

Desse modo, deixarei de lado essa distinção entre estabelecimento comercial e fundo de comércio, tratando as expressões como sinônimas.

Passada a questão da nomenclatura, entramos no estudo do conceito de fundo de comércio (estabelecimento comercial). Primeiramente, vejamos o que diz o Código Civil de 2002:

Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.”

O artigo, que não encontra correspondente no Código Civil de 1916, não é claro em sua definição do que seja estabelecimento. Apenas dá uma diretriz para o estudo a respeito. Vejamos, portanto, a posição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery a respeito:

Estabelecimento empresarial é o complexo de bens, materiais e imateriais, organizados pelo empresário ou sociedade empresária, para o fim de exercício da empresa (que é uma atividade). Esses bens devem estar organizados para a atividade da empresa, vale dizer, devem ter escopo produtivo bem como ligação intrínseca entre si – ligação funcional – para que possam constituir-se e caracterizar-se como integrantes do estabelecimento. Um conjunto ou agrupamento de bens isolados, sem a ligação funcional, em princípio não se caracteriza como estabelecimento, mas sim como integrante do patrimônio do empresário ou da sociedade empresária. O estabelecimento empresarial (ou fundo de comércio) não pode ser confundido com o patrimônio da sociedade.” (02)

Da leitura do trecho, destaca-se o termo ligação funcional, ou seja, o conjunto de bens da empresa deve estar interligado para, funcionando em conjunto, ser considerado fundo de comércio. Nota-se, também, que há menção sobre a natureza dos bens como materiais (corpóreos) e imateriais (incorpóreos). Esta distinção é feita, pelos autores, em seguida:

Consideram-se como bens, que, juntos e ligados funcionalmente ao escopo-fim da atividade empresarial, formam o denominado complexo organizado, vale dizer, o estabelecimento, o imóvel onde se localizar a sociedade empresária, os signos e nome comercial, a clientela ou freguesia, direito à locação comercial (ponto comercial), direitos de propriedade industrial ou artística (tais como patentes, marcas de comércio e de fábrica, desenhos e modelos industrial), material e móveis necessários às atividades comerciais e industriais (…).

Desse modo, percebe-se que os autores consideram o fundo de comércio, uma união de bens materiais e imateriais, que, agindo em conjunto, possibilitariam o exercício da empresa. Neste momento, me permito criar um exemplo para cristalizar essa posição: em uma loja de parafusos, apenas o fundo de comércio, o aparato físico e os produtos (parafusos) não formam, isoladamente, o fundo de comércio. Todavia, esses três itens, somados à marca dos parafusos, o nome da loja, à clientela da loja, além de outros elementos, todos empregados no êxito da atividade social, formam o fundo de comércio.

Entende-se, assim, que o fundo de comércio corresponde ao conjunto de bens corpóreos e incorpóreos organizados pelo empresário para a exploração da atividade econômica. Juntamente com o empresário e a empresa, o estabelecimento empresarial corresponde a um dos elementos da empresarialidade destacados por Waldirio Bulgarelli. (03)

Seguindo essa posição, Amador Paes de Almeida define da seguinte forma:

Estabelecimento é um complexo de bens materiais e imateriais, reunidos e organizados para o exercício da atividade empresarial – é, portanto, um dos elementos da empresa.(04)

O autor fala em complexo de bens, o que é semelhante à ligação funcional, que falam Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. Apesar da tentativa supra, a partir do exemplo, de definir o que seria a ligação funcional, durante os estudos encontrei explicação mais bem elaborada, a qual transcrevo abaixo:

Todas as coisas são necessariamente constituídas por outras, mas os elementos constitutivos das coisas podem por vezes perder, na sua união, a própria individualidade, por forma que a coisa resultante dessa união deve considerar-se como materialmente uma. Neste caso, diz-se que a coisa é simples. Por exemplo: um bocado de metal, mesmo formado de outros bocados soldados entre si, um animal, uma planta, uma pedra. Quando, pelo contrário, uma coisa é formada de elementos, outras coisas que conservam uma individualidade própria, por forma que, unidos, servem para satisfazer uma necessidade, embora separadas pudessem também servir para satisfazer outras, neste caso a coisa diz-se uma coisa completa. São coisas complexas um edifício, um navio, um adereço de pedras preciosas, etc.
Há, porém, duas espécies de coisas complexas. Há aquelas em que seus elementos se acham unidos entre si materialmente, como, por exemplo, o edifício ou navio, e há outras em que esta união é puramente ideal, no sentido de que os seus elementos se acham unidos enquanto servem só para satisfazer uma necessidade única, como acontece com o rebanho, uma galeria de quadros ou uma biblioteca.

No primeiro caso, temos as coisas ditas compostas, no segundo temos uma universalidade de coisas. Na universalidade de coisas, sendo a união de seus elementos determinada pelo fim, estes elementos podem variar, permanecendo idêntico o conjunto.

Por outros termos, a universalidade se modifica pela modificação dos seus elementos, que por isso não são determinados individualmente, mas sim pelo fato de sua integração no todo.(05) (grifos nossos)

Assim, conforme o trecho acima, o fundo de comércio seria uma universalidade de bens que estão unidos visando à satisfação de uma finalidade, qual seja o exercício da empresa. Só seria formado o fundo de comércio quando estes bens estivessem ligados, empregados na mesma finalidade, pois, caso contrário, seriam apenas parte do patrimônio da empresa.

Seguindo este mesmo diapasão, Fabio Ulhôa Coelho entende que o complexo de bens reunidos pelo empresário para o desenvolvimento de sua unidade econômica é o estabelecimento empresarial (06). Destaque para o fato do uso da expressão complexo de bens, assim como o professor Amador Paes de Almeida, acima citado. Também nos mesmos parâmetros daquele autor, Fabio Ulhôa Canto direciona atenção especial para explicar o que seria esse complexo de bens, momento no qual faz analogia com uma biblioteca, outro conjunto de bens. Segundo ele, na biblioteca

(nela) não há apenas livros agrupados ao acaso, mas um conjunto de livros sistematicamente reunidos, dispostos organizadamente, com vistas a um fim – possibilitar o acesso racional a determinado tipo de informação. Uma biblioteca tem valor comercial superior ao da simples soma dos preços dos livros que a compõe, justamente em razão desse plus, dessa organização racional das informações contidas nos livros nela reunidos.(07)

Vale esclarecer que, este mesmo doutrinador, mais além, mantém a mesma linha sobre as diferentes naturezas dos bens que compõe esse “complexo de bens reunidos pelo empresário“, quando diz que o estabelecimento comercial é composto por bens corpóreos e incorpóreos.

Outra manifestação no mesmo sentido é do magistrado Francisco Rocha De Barros, que, lembrando lição de Pedro Nunes em seu ‘Dicionário de Tecnologia Jurídica’, diz que fundo de comércio seria:

conjunto de bens corpóreos e incorpóreos ou uma universalidade de coisas e direitos, ativos e passivos – universitas facti – que constituem o patrimônio do comerciante: as mercadorias, os móveis e semoventes, os utensílios, o título, o ponto e a fama do estabelecimento que ele explora; a sua freguesia e clientela, o contrato de locação, o nome comercial, as patentes de invenção, o registro de marca de indústria e de comércio, etc.'” (08)

A mesma concepção tem Rubens Requião. Segundo ele o fundo de comércio ou estabelecimento comercial é o instrumento da atividade do empresário. Com ele o empresário comercial aparelha-se para exercer sua atividade. (…) Compõe-se o estabelecimento comercial de elementos corpóreos e incorpóreos, que o empresário une para o exercício de sua atividade (09). E neste mesmo estudo, mais adiante ao estudar sobre a natureza jurídica do estabelecimento comercial, contribui ainda mais para o entendimento a respeito:

Não sendo universalidade de direito nem patrimônio separado, o fundo de comércio a muitos parece ser uma simples universalidade de fato. A universalidade de fato constitui um conjunto de bens que se mantêm unidos, destinados a um fim, por vontade e determinação de seu proprietário. Cita-se como exemplo a biblioteca e o rebanho, que são compostos de unidades que permanecem unidas pela vontade do proprietário, que a qualquer momento pode desintegrá-las.

Carvalho de Mendonça também acompanha os doutrinadores acima quando preceitua que estabelecimento comercial designa o complexo de meios idôneos, materiais e imateriais, pelos quais o comerciante explora determinada espécie de comércio; é o organismo econômico aparelhado para o exercício do comércio (10). Posição praticamente idêntica tem João Eunápio Borges em sua obra, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1967. P. 182 e seguintes).

Essa também é a concepção de Fran Martins, que conceitua fundo de comércio como o

conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos utilizados pelos comerciantes para exercerem com sucesso suas atividades, visando sempre à atração da freguesia“. (11)

Assim também é a posição do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar a ação de desapropriação n. 0003190-17.2006.8.26.0145, onde proprietário de imóvel locado foi desapropriado pela Prefeitura e requereu indenização pelo fundo de comércio perdido, julgamento realizado em 22.11.2010, sob relatoria do Desembargor Oliveira Santos da 6ª Câmara de Direito Público:

O fundo de comércio, isto é, o estabelecimento comercial, é elemento integrante do patrimônio do empresário. Trata-se, pois, do conjunto de bens corpóreos e incorpóreos organizados para o desenvolvimento de atividade empresarial. E o ponto comercial, qual seja, o local onde se desenvolve a empresa, agrega valor tão-somente ao estabelecimento.” (grifos nossos)

Outra manifestação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo segue os mesmos termos sobre os bens que formam o fundo de comércio:

Franquia – Rescisão contratual – Disputa do fundo de comércio – Conjunto de bens materiais e imateriais que, formado em colaboração recíproca entre a franqueada e a franqueadora, pertence a ambas em igual proporção – Recurso da franqueada provido em parte para esse fim, desprovido o de seus sócios e o da franqueadora.
(TJ-SP, Apelação 7382991-1/00, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Sabbato, Data de Julgamento: 07/04/2010)

Vejamos posição do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO DE EMPRESA – INDENIZAÇÃO – FUNDO DE COMÉRCIO – JUROS COMPENSATÓRIOS – JUROS MORATÓRIOS – HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. A jurisprudência desta Corte consolidou-se no sentido de incluir na indenização de empresa expropriada o valor do fundo de comércio.

2. O fundo de comércio é considerado patrimônio incorpóreo, sendo composto de bens como nome comercial, ponto comercial e aviamento, entendendo-se como tal a aptidão que tem a empresa de produzir lucros.

3. A empresa que esteja temporariamente paralisada ou com problemas fiscais, tal como intervenção estatal, não está despida do seu patrimônio incorpóreo, o qual oscila de valor, a depender do estágio de sua credibilidade no mercado. Situação devidamente sopesada pelo Tribunal de origem que adotou o arbitramento feito pelo perito, estimando o fundo de comércio em 1/3 (um terço) do patrimônio líquido ajustado a 31/05/1985.
(…)

7. Recurso especial da União provido em parte.”
(REsp 704.726/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2005, DJ 06/03/2006, p. 329) (grifos nossos)

O mesmo STJ, em julgamento do Recurso Especial n. 406.502/SP (acórdão publicado em 27.5.2002), através de voto do relator, Min. Garcia Vieira, ao tratar de indenização por desapropriação de imóvel comercial, posicionou-se diferentemente sobre a questão, incluindo apenas os bens corpóreos no conceito de fundo de comércio:

O fundo de comércio é uma universalidade de bens corpóreos que mantém unitariamente sua individualidade, pelo que merece a proteção constitucional assegurada ao direito de propriedade, em se tratando de desapropriação do imóvel.”

Já o E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais utiliza definição proveniente do Dicionário Aurélio, nos mesmos moldes das definições aqui relacionadas, conforme abaixo:

O conceito de fundo de comércio encontrado no Dicionário Aurélio é o seguinte, in verbis:
‘Conjunto de bens e direitos, tangíveis ou não, que constituem o patrimônio do comerciante (instalações, mercadorias, nome e ponto do estabelecimento, freguesia, etc.)’.
Aviamento, ainda segundo o Dicionário Aurélio, é o elemento essencial do estabelecimento comercial: o conjunto de aparelhamento, freguesia, crédito e reputação.(12)

Ao analisar a jurisprudência a respeito, deparei-me com interessante julgado, do qual segue ementa, que, apesar de não estar totalmente ligado ao tema, pode contribuir com os estudos:

LOCAÇÃO – ESTACIONAMENTO DE VEÍCULOS EM CONDOMÍNIO COMERCIAL – RENOVATÓRIA – INADMISSIBILIDADE – EXCEÇÃO EXPRESSA EM LEI – APLICAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL – INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 8.245/91 – AÇÃO IMPROCEDENTE –
RECURSO NÃO PROVIDO.
Os serviços de administração de estacionamento em condomínio comercial não podem ser considerados como locação de área para exploração de estacionamento de veículos.
(TJ-SP, Apelação 992.06.073470-0, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ferraz Felisardo, Data de Julgamento: 10/11/2010)

O processo é uma ação renovatória de locação, onde a requerente ajuizou ação objetivando a renovação da locação de estacionamento localizado em condomínio. Alegou que o aluguel era para exploração de atividade de uma sociedade civil com fins lucrativos. Como pedido alternativo, requereu indenização por constrangimento do fundo comercial, visto que perdeu o seu ponto comercial, o qual seria, supostamente, o principal aspecto do fundo comercial da requerente. Entretanto, essas argumentações caíram por terra, pois se considerou que “a ampliação do fundo de comércio nos termos modernos não pode abarcar locação de imóvel utilizado para estacionamento de veículo, onde existe apenas prestação de serviços“.

Há, também, alguns doutrinadores que entendem que fundo de comércio seria a clientela da empresa. Não existe, na doutrina brasileira, autor que seja a favor desta posição, entretanto, posição tem diversos seguidores na doutrina estrangeira.

Com base no exposto, pode-se entender que, segundo a visão do direito comercial, estabelecimento empresarial (ou fundo de comércio) é o conjunto de bens que o empresário reúne para exploração e desenvolvimento de sua atividade econômica. Ele é composto por bens corpóreos e incorpóreos, os quais são indispensáveis ou úteis ao desenvolvimento da empresa.

Ao organizar um estabelecimento, o empresário, ao reunir os bens, agrega um sobrevalor, ouplus. Isto é, enquanto esses bens permanecem empregados em função da empresa, o conjunto recebe um valor superior à simples soma do valor cada um deles em separado.

3 – Fundo de comércio visto sob o prisma do direito tributário

Por sua vez, no âmbito fiscal, a polêmica a respeito da conceituação do Fundo de Comércio nasce principalmente devido aos art. 133, do Código Tributário Nacional, o qual trata a respeito da sucessão fiscal,20 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26.12.1977 e 7º da Lei nº 9.532, de 10.12.1997, estes dois últimos que tratam da forma de avaliação do investimento e, mais especificamente, a forma de lançamento dos valores de ágio e deságio, e as hipóteses em que esse poderá ser amortizado.

Antes de qualquer consideração, vale ressaltar que esses artigos não possuem qualquer definição do termo (13). Além disso, o art. 133 do CTNfaz uma equivalência entre fundo de comércio e estabelecimento comercial, conforme visto no item anterior. Neste mesmo sentido é o Parecer Normativo do Coordenador do Sistema de Tributação – CST n. 2 de 1972, o qual conceitua o termo da seguinte forma:

Designa o complexo de bens, materiais ou não, dos quais o comerciante se serve na exploração de seu negócio. ‘Ê uma universalidade expressiva de corpo certo, individualizado, apesar das modificações sucessivas que podem sofrer seus elementos’ (Bento de Faria. Direito Comercial; Hanus, Études du fonds de commerce).

Observa-se que a Receita Federal apoia-se na doutrina comercial, dando indícios de que não havia, na doutrina tributária, bons estudos a respeito.

Posteriormente, a Receita Federal, editou o Parecer Normativo nº 20 de 1982, onde ratificou esse entendimento definindo que

ocorre sucessão empresarial quando há aquisição de universalidade constituída por estabelecimento comercial ou fundo de comércio, assumindo o adquirente o ativo e passivo de firme ou sociedade.”

Dessa forma, fica claro que, ao entender da Receita Federal, o fundo de comércio ou estabelecimento comercial seria a soma dos bens, materiais ou não, que o comerciante utiliza na exploração de seu negócio. Seguindo essa posição, vejamos a doutrina:

O estabelecimento comercial também conhecido pelas expressões fundo de comércio, utilizada pelos franceses (fonds de commerce), ou azienda, esta ultima em face da influência do direito italiano no estudo do instituto, é assim definido por Rubens Requião: ‘O fundo de comércio é instrumento da atividade do empresário. Com ele o empresário comercial aparelha-se para exercer sua atividade. Forma o fundo de comércio a base física da empresa, constituindo um instrumento da atividade empresarial. O Código italiano o define como o complexo dos bens organizados pelo empresário, para o exercício da empresa.’ (Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 21 ed., São Paulo, Saraiva, v. 1, p. 203-204)
Em resumo, o estabelecimento comercial constitui um conjunto de bens empregados pelo empresário no exercício de sua atividade.(14)

Destaco que a posição acima, apesar de transmitida por tributarista, é originária de estudos de direito comercial do eminente jurista Rubens Requião. Isso faz pensar que o autor não tenha ficado satisfeito com a posição de tributaristas, visto que, no direito comercial, conforme acima demonstrado, esse termo foi estudado e atacado mais amplamente.

Corroborando com essa posição, Ives Gandra da Silva Martins diz que “‘fundo de comércio'” não se confunde com ‘ponto comercial’. Fundo é ‘a integralidade dos bens patrimoniais, inclusive os de natureza pessoal e de valor imaterial’ e não apenas um ‘local’, para exploração de idênticas atividades, mas não da respectiva atividade.(15) Vale destacar que Leandro Paulsen compartilha desta mesma posição, valendo-se, inclusive, das mesmas palavras de Martins para definir fundo de comércio em sua obra Direito Tributário. Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência (Ed. Livraria do Advogado. 11ª Ed. Porto Alegre, 2009).

Nesse mesmo diapasão, Zelmo Denari traz definição similar:

Hodiernamente, contudo, o galicismo jurídico ganhou amplitude e por fundo de comércio tem sido entendido a soma dos elementos corpóreos (móveis, utensílios, máquinas, mercadorias e matérias-primas) e dos elementos incorpóreos (nome comercial, direito de clientela, marcas, patentes de invenção) que compõe o estabelecimento.” (16) ]

Vejamos o que diz Bernardo Ribeiro de Moraes:

O estabelecimento vem a ser um complexo de bens, corpóreos (bens pertencentes ao ativo fixo da empresa, v.g., imóveis, utensílios, instalações, máquinas, etc., ou ativo circulante, v.g., mercadorias, matérias-primas, bens de consumo, etc.) e incorpóreos (privilégios de invenção, modelos de utilidade, modelos industriais, marcas, nome comercial, título do estabelecimento, segredo industrial, etc.), de caráter instrumental, destinados ao exercício da atividade econômica.

Na essência do estabelecimento estão compreendidos dois elementos essenciais, a saber: um elemento substancial, concretizado no complexo de bens materiais e imateriais; e um elemento formal, caracterizado pela organização que tende a um fim, qual seja, ao exercício da empresa.” (17)

Destaco que todos os autores tributários que se preocuparam em definir um conceito para fundo de comércio, possuem ideia muito semelhante. Entretanto, dentre eles, válido novamente o destaque de definição de Zelmo Danari, escolhida por sua completude e simplicidade:

Quando se diz que o estabelecimento constitui um complexo de bens, aí estão compreendidos não só as coisas corpóreas como as imateriais. Aquelas englobam todo o acervo mobiliário, além dos imóveis com específica afetação empresarial. Dentre os componentes incorpóreos – como o nome comercial, clientela, insígnias, marcas, emblemas, patentes – devem ser incluídas as relações jurídicas ativas (créditos e demais direitos) e passivas (débitos comerciais e obrigações tributárias), compreendendo portanto o ativo e o passivo de uma empresa.” (18)

Deixando de lado as posições doutrinárias, foca-se a análise sobre a jurisprudência tributária e seu entendimento sobre o feito. Em pesquisa nos sites dos mais diversos tribunais, não parece farta a jurisprudência a respeito do tema, todavia, mesmo assim, existem algumas decisões que possibilitam nossa análise.

Com definição um pouco diferente, mas de semântica idêntica às opiniões trazidas acima, transcrevo trecho de acórdão publicado em 24.4.2002, proferido no processo n. 2000.04.01.090735-0/SC, pelo Juiz Convocado Alcides Vettorazzi, membro do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que, ao atacar a questão, definiu:

Estabelecimento comercial ou fundo de comércio é o conjunto de bens operados pelo comerciante. Compõe-se o estabelecimento de coisas corpóreas e incorpóreas. Entre as corpóreas estão os balcões, as vitrines, as máquinas, os imóveis, as instalações, as viaturas e etc. Entre as incorpóreas estão o ponto, o título do estabelecimento, as marcas, as patentes, os sinais ou expressões de propaganda, o know-how, o segredo de fábrica, os contratos, os créditos, a clientela ou freguesia e o aviamento (capacidade de produzir lucros)“. (grifos nossos)

Permanecendo o entendimento acima esposado, o E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em outra decisão, se pronunciou de forma idêntica, deixando claro que o fundo de comércio é mais do que apenas os bens móveis de uma empresa. Vejamos:

TRIBUTÁRIO. AQUISIÇÃO DE ATIVO DE EMPRESA FALIDA (IMÓVEIS E MÓVEIS). LEILÃO. PRETENDIDA A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA POR SUCESSÃO. FUNDO DE COMÉRCIO. NÃO CABIMENTO. CTN ARTS. 130 E 133.
1. (…)
2. Embora seja certo que a aquisição da propriedade pode se dar ‘a qualquer título’, também é certo que para a caracterização da sucessão tributária é necessário que haja a aquisição do fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional. No caso, o apelante adquiriu em leilão apenas bens corpóreos (lotes de terra, cercas, guaritas, escritório, laboratório, casas, etc.), não havendo pois, que se falar em aquisição do fundo de comércio, inexistindo consequentemente , responsabilidade por sucessão tributária.”
(TRF-4ªR, AC 97.04.45394-9/PR, 2ª Turma, Rel. Juiz Marcio Antonio Rocha, DJU 04/04/2001, p. 631)

Em outro precedente do mesmo Tribunal, o ilustre Desembargador Federal Vilson Darós, em julgamento do agravo 2002.04.01.011999-9, acórdão publicado em 6.8.2002 ao atacar o assunto, recorre a definição do Ilustre doutrinador Fábio Ulhoa Coelho:

“O fundo de comércio, ou estabelecimento comercial, é, por definição, o conjunto de bens necessários ao desenvolvimento da atividade comercial. Na lição de Fábio Ulhoa Coelho (in Manual de Direito Comercial, Ed. Saraiva, 5ª edição, 1994), 1quando o comerciante reúne bens de variada natureza, com as mercadorias, máquinas, instalações, tecnologia, prédio etc., em função do exercício de uma atividade, ele agrega a este conjunto de bens uma organização racional que importará em um aumento do seu valor enquanto continuarem reunidos’ (grifo no original). O estabelecimento comercial constitui, portanto, uma universalidade, e, como um bem do patrimônio do comerciante, não se confunde com a somatória dos bens que o compõem, de forma que cada um deles, isoladamente, (o prédio, as mercadorias, as máquinas (…) não constitui fundo de comércio).” (grifos nossos)

Em vista do exposto, verifica-se que a doutrina e jurisprudência tributária ainda não estudaram de forma profunda o fundo de comércio, valendo-se, na maioria das vezes, dos estudos de direito comercial, e, nestes casos, corroborando com a mesma posição.

4 – Conclusão

Ante o exposto, conclui-se que a melhor definição para fundo de comércio seja o conjunto de bens, corpóreos ou incorpóreos, que o empresário reúne para exploração e desenvolvimento de sua atividade econômica, o que está pacífico na jurisprudência.

Entretanto, durante os estudos sobre o tema surge a duvida de como se pode quantificar, classificar e, mais importante, determinar os bens que fazem parte ou não do fundo de comércio. Esse aspecto parece ser totalmente subjetivo, e difere de empresa para empresa, de forma que não existe uma maneira geral de determinar que tais categorias de bens fazem parte e determinadas outras não fazem. Ademais, essa dúvida também se faz presente na doutrina. Segue interessante consideração que deixa clara a existência do fundo de comércio, mas que não pode ser definido com exatidão, por ser um conjunto de diversos bens:

Entrado em atividade, cai o estabelecimento nas graças do público, por fatores inúmeros. Porque suas instalações apresentam linhas de elegância e ponham as mercadorias em destaque. Porque os seus mostruários seduzam pelo bom gosto de seus arranjos. Porque o sortimento de mercadorias se renove constantemente, por isso, se mostre sempre original. Porque haja, da parte de seus empregados, delicadeza no trato, habilidade no oferecer os artigos, inteligência no adivinhar, mais que a vontade, o gosto dos fregueses. Torna-se o estabelecimento, dessarte, freqüentado assiduamente. Converte-se, até, em ponto de reunião social.” (19)

Como visto, diversos são os fatores que poderiam ser considerados essenciais, e integrantes do fundo de comércio, pois o espírito do negócio é criado por um emaranhado de fatores objetivos e, principalmente, subjetivos, dependendo, estes últimos, de valoração pessoal.

Dessa forma, resta a impressão de que o campo jurídico não tenha conseguido determinar, e talvez, nem entender, a essência de fundo comercial, conceituando em tese, e com alguns exemplos.

Particularmente, acredito que o fundo comercial seria a alma e a identidade do empreendimento. Seria ele, então, que traria a afinidade entre o negócio e o mundo exterior, ou seja, o catalisador de clientes. Isso, portanto, só conseguiria ser definido na análise minuciosa de cada caso, não sendo possível realmente extrair uma posição subjetiva sobre a situação.

Notas

(01) ALMEIDA, Amador Paes de. Locação Comercial (Ação Renovatória). 10ª Edição. São Paulo. Saraiva, 1999. P. 3.

(02) NERY JR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado e Legislação Extravagante. 3ª Edição. São Paulo. Ed. RT, 2005. P.594.

(03) BULGARELLI, Waldirio. Tratado de Direito Empresarial. 12ª Edição. São Paulo. Atlas, 1997. P.109.

(04) ALMEIDA, Amador Paes de. Direito de Empresa no Código Civil. São Paulo. Saraiva, 2004. P. 30.

(05) ROCCO, Alfredo. In: ALMEIDA, Amador Paes de. Direito de Empresa no Código Civil. São Paulo. Saraiva, 2004. P. 25-26.

(06) COELHO, Fabio Ulhôa. Manual de Direito Comercial. 22ª Edição. Saraiva, 2010. P. 56.

(07) Idem 6.

(08) BARROS, Francisco Rocha de. Comentários à Lei do Inquilinato, São Paulo. Saraiva, 1995, P. 244.

(09) REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 16ª Edição. São Paulo. Saraiva, 1985.

(10) MENDONÇA, Carvalho de. In: ALMEIDA, Amador Paes de. Locação Comercial (Ação Renovatória). 10ª Edição. São Paulo. Saraiva, 1999. P. 4.

(11) MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro. Forense, 1999. P. 327-329

(12) Processo n. 0537321-04.2005.8.13.0647, 15ª Câmara Cível do TJMG, Rel. Des. Bittencourt Marcondes, DJ: 11/03/2008.

(13) Até porque o Direito Tributário é o chamado Direito de sobreposição, de forma que “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado”, conforme disposição do art. 110, do CTN.

(14) FREITAS, Wladimir Passos (Coordenador). Código Tributário Nacional. 3ª Edição. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 2005. P. 599-560.

(15) MARTINS, Ives Gandra da Silva. Inteligência do artigo 133 do Código Tributário Nacional – Origem do Dispositivo – Evolução Jurisprudencial e Doutrinária – Inaplicabilidade à Hipótese Consultada. RDDT n. 145, outubro 2007, p. 135.

(16) DENARI, Zelmo. Solidariedade e Sucessão Tributária. São Paulo. Ed. Saraiva, 1977. P. 103.

(17) MORAES, Bernardo Ribeiro de. IOB – Informativo Dinâmico n. 1285, p. 639. In: MARIZ DE OLIVEIRA, Ricardo. Inexistência de sucessão tributária relativa ao imposto de renda no caso de simples aquisição de imóvel comercial, exploração da mesma atividade no local e anterior existência de sociedade em conta de participação com o antigo proprietário. Direito Tributário Atual Vol. 6. São Paulo. Editora Resenha Tributária, 1986. P. 1456 e seguintes.

(18) Idem 2.

(19) FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. 6º Volume. São Paulo. Saraiva, 1962. P. 106

Autor: Paulo Coviello Filho, advogado
Fonte: FISCOSOFT