A garantia da não auto-incriminação, que contempla, dentre outros, o direito ao silêncio, vale para a fase investigativa inicial. Por força dessa garantia ninguém é obrigado a se incriminar.
Como uma das emanações mais legítimas do princípio da presunção de inocência, ela envolve: (a) o direito de não declarar nada (direito ao silêncio – CF, art. 5.º, inc. LXIII = direito de ficar calado) (é a manifestação passiva da defesa); (b) se declarar, direito de não declarar contra si mesmo; (c) direito de não confessar sua responsabilidade PIDCP, art. 14.3; CADH, art. 8.2; 8.3; (d) direito de mentir (não há o crime de perjúrio no Brasil); (e) direito de não praticar nenhum comportamento ativo que lhe comprometa (ou que lhe prejudique).
Exemplo: direito de não participar da reconstituição do crime, direito de não ceder material gráfico para exame grafotécnico (STF, Ilmar Galvão, Informativo STF 122, p. 1) etc.; (f) direito de não produzir nenhuma prova que envolva o seu corpo humano (exame de sangue, exame de urina, bafômetro etc.).
Apesar de todas essas clarezas conceituais (e da jurisprudência torrencial do STF no sentido de que ninguém é obrigado a se incriminar quando é ouvido como suspeito ou indiciado ou testemunha etc.), a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, depois de dois anos de discussão, aprovou (no princípio de novembro de 2008) o Projeto de lei que prevê pena de prisão para quem mentir ou calar a verdade ou manter-se em silêncio quando convocada para depor na qualidade de acusada, de testemunha, de perito, de contador, de tradutor ou de intérprete, seja perante uma CPI, seja perante qualquer outra autoridade investigativa.
O Projeto é de autoria dos membros da CPI Mista dos Correios, que se sentiram tolhidos em seus poderes investigativos em razão de incontáveis liminares concedidas pelo STF para se evitar a prisão ou o processamento dos convocados. Estes alegam (perante o STF) que correm risco de prisão ou de processamento quando exercem o direito ao silêncio.
O conflito aberto entre o STF e o Legislativo brasileiro a cada dia ganha um novo capítulo. O STF, como guardião da Constituição, a interpreta e dita suas decisões. Muitas vezes isso conflita com os interesses (normalmente eleitoreiros) dos parlamentares. A reação destes últimos manifesta-se (com freqüência) na aprovação de projetos estapafúrdios e inconstitucionais.
O STF vem concedendo dezenas de liminares aos convocados pelas CPIs sob o argumento de que o direito ao silêncio é um direito constitucional, derivado do princípio da presunção de inocência, que assegura a garantia da não auto-incriminação (ou seja: ninguém é obrigado a se incriminar).
Os parlamentares, que muitas vezes estão mais preocupados com os holofotes que com a validade do Texto Constitucional, afirmam que essas liminares atrapalham as investigações. O Parlamento brasileiro, com freqüência, não entende que o direito de investigar (e de produzir provas) não é absoluto.
Nem tudo que é útil para provar um delito é legalmente ou constitucionalmente ou moralmente válido. A tortura, por exemplo, pode ser um frutífero meio probatório, mas constitui prova ilícita (não válida).
A atividade de investigar e de provar, no Estado de Direito constitucional, tem limites (incontáveis limites). O ato de investigar, que é muito relevante, não é superior a outros valores ou princípios constitucionais. As provas devem ser colhidas de acordo com o ordenamento jurídico vigente.
Ainda que este ordenamento jurídico apresente certas limitações à investigação (por exemplo: direito ao silêncio), mesmo assim, tudo está centrado no respeito aos valores superiores que guiam o Estado de Direito constitucional brasileiro (e desembocam na dignidade humana).
As pretensões (demagógicas acima de tudo) de alguns parlamentares de quebrar a valia dos princípios constitucionais não podem se sobrepor à vontade do constituinte original. Nenhum país civilizado (no mundo todo) admite poderes ilimitados na produção de provas que se destinam a derrubar a (relativa) presunção de inocência.
As liminares do STF, diferentemente do que afirmam os parlamentares, não constituem “um duro golpe contra o interesse público”, além de “aviltarem o direito dos cidadãos e da sociedade de acesso à verdade real”. Ao contrário.
Pensamos que as liminares do STF atendem o interesse público de preservação dos valores, princípios e regras do Estado de Direito constitucional vigente. O STF não cumpriria seu papel de guardião da Constituição se se comportasse de forma diferente.
As liminares, de outro lado, não aviltam o direito do cidadão ou da sociedade de acesso à verdade real, porque esse acesso não é irrestrito. O uso da tortura está vedado, logo, não se pode querer a verdade real por meio dela.
A verdade real, na atualidade, como se vê, não passa de uma verdade processual (como diz Ferrajoli), ou seja, de uma verdade que se pode alcançar de acordo com o devido processo legal.
O STF, de outro lado, não está dando nenhuma interpretação “dilatada” ao princípio da presunção de inocência. Está cumprindo rigorosamente o que está escrito no ordenamento jurídico vigente, sobretudo no art. 8.º da CADH (que possui valor constitucional, consoante voto do Min. Celso de Mello HC 87.585-TO).
As autoridades investigativas (especialmente as CPIs) devem se conscientizar de que não existe poder absoluto no Estado de Direito constitucional. E quem investiga hoje pode ser investigado amanhã (caso viole as regras legais ou constitucionais ou internacionais vigentes). Quem aprova uma lei absurda hoje pode também ser o investigado de amanhã.
A sociedade clama pela apuração das denúncias, mas ao mesmo tempo está dizendo (sobretudo por meio do STF) que há regras éticas e jurídicas que devem ser observadas. A leitura que alguns parlamentares fazem da Constituição vigente não condiz com sua condição de representante legítimo do povo. Jogar para o “povão”, com oportunismo eleitoral, não é a mesma coisa que construir uma nação digna.
O Estado de Polícia não pode se sobrepor ao Estado de Direito constitucional. O Direito penal do inimigo (que se funda na violação dos direitos e garantias fundamentais) não pode substituir o Direito penal do cidadão (e todos somos cidadãos e assim devemos ser tratados, em qualquer que seja o momento da persecução penal).
O plenário do Senado Federal, com certeza, ao não embarcar na emocionalidade eleitoreira de alguns parlamentares, deve rejeitar o projeto de lei (demagogicamente) aprovado pela CCJ.
Fonte: ParanáOnline