O proponente sugere que seja editada uma nova Súmula Vinculante, desta feita com o seguinte teor:
“Durante o período previsto no parágrafo primeiro do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora, voltando a correr a partir do vencimento do precatório, caso não pago dentro daquele período.”
A jurisprudência do STF, há muito, consolidou-se no sentido de que não incidem juros de mora no período compreendido entre a expedição do precatório e o seu pagamento, em obséquio ao comando constitucional contido no artigo 100, § 1º, da Carta Magna.
No julgamento RE 591.085-MS, por 8 votos a 1 (vencido o Ministro Marco Aurélio, que entende devida a incidência de juros durante todo o período), o STF reconheceu a repercussão geral do tema, reafirmou sua jurisprudência (citando o que já havia sido decidido no RE 298.616-SP) e extraiu proposta de edição de súmula vinculante sobre o assunto, apresentada pelo relator, o Ministro Ricardo Lewandowski.
A proposta, autuada como PSV 32, foi submetida ao Plenário em 29/10/2009, e aprovada (vencido mais uma vez apenas o Ministro Marco Aurélio), o que ensejou a edição do seguinte enunciado vinculante:
“Durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos.”
A despeito da suficiente clareza do texto da Súmula, o fato é que se verifica em vários Tribunais divergência quanto à incidência, ou não, de juros de mora durante o período previsto no artigo 100, § 1º, da Carta Magna nas hipóteses em que o pagamento não observa o prazo constitucional. Daí, portanto, mostra-se pertinente a sugestão de revisão proposta pelo Governador do Estado de São Paulo, que certamente dissipará a dúvida.
Ressalte-se, por oportuno, que a tese da incidência de juros moratórios durante o período de que dispõe a Fazenda Pública para efetuar o pagamento, nas hipóteses em que o adimplemento exorbita o prazo, poderia fazer algum sentido se se tratasse de alguma espécie de punição ou reprimenda ao Poder Público. No entanto, sob um prisma lógico-jurídico, que deve necessariamente considerar a natureza jurídica dos juros moratórios, destinados, como se sabe, a indenizar o atraso injustificado no cumprimento de uma obrigação, o raciocínio segundo o qual o termo inicial dos juros moratórios deve retroagir à data da expedição do precatório não se sustenta.
Nesse sentido, a lição de Leonardo José Carneiro da Cunha, estudioso dos temas processuais afetos à Fazenda Pública, em seu “A Fazenda Pública em Juízo”, 7ª edição, página 307, expressada nos seguintes termos:
“Na verdade, os juros moratórios somente incidem a partir do atraso no pagamento, ou seja, decorrido o exercício financeiro, e não tendo sido pago, a partir de janeiro do ano seguinte é que deve iniciar o cômputo dos juros. Assim, tome-se como exemplo um precatório que tenha sido inscrito até o dia 1º de julho de 2009. Deverá, como se viu, ser efetuado o pagamento até o daí 31 de dezembro de 2010, respeitada a ordem cronológica de inscrição. Sendo o pagamento realizado até aquele dia 31 de dezembro, não haverá cômputo de juros moratórios, eis que não houve inadimplemento. Passado, contudo, o dia 31 de dezembro de 2010, sem que tenha havido o pagamento, os juros moratórios haverão de incidir a partir de 1º de janeiro de 2011 até a data em que ocorrer o efetivo pagamento.”
Fundamental notar, neste passo, que não há, na jurisprudência do Pretório Excelso, controvérsia relevante acerca da (não) incidência dos juros no período constitucional de que a Fazenda Pública dispõe para pagamento, mesmo nos casos em que o adimplemento não observa referido prazo.
Na verdade, a grande maioria dos julgados simplesmente não traz essa ressalva ou diferenciação. Os arestos do Supremo centram-se no entendimento segundo o qual durante o prazo constitucional, por não haver mora, não há que se falar em incidência de juros, e admitem, invariavelmente, a incidência de juros a partir do escoamento do prazo (final do exercício seguinte).
Em algumas ocasiões, contudo, a questão foi alvo de atenção de alguns Ministros, que se preocuparam em enfatizar que, nos casos em que o precatório não for pago dentro do período constitucional, os juros devem incidir apenas a partir do término do prazo, quando, então, há, segundo o sistema instituído pela Constituição Federal, atraso no pagamento.
No próprio julgamento do RE com RG 591.085, o saudoso Ministro Menezes Direito, ao proclamar seu voto, enfatizou o raciocínio adotado pelo Tribunal acerca do momento de incidência de juros de mora, não tendo sido interpelado por nenhum dos outros Ministros. Nessas palavras a manifestação do Ministro:
“Senhor Presidente, entendo, como disse o Relator, que já há precedentes da Turma e do Plenário assentados nessa direção, ou seja, no que diz com os juros de mora, contar a partir do fim do exercício em que eles deveriam ser pagos.”
Da mesma forma, a Ministra Ellen Gracie, por ocasião dos debates que culminaram com a edição da Súmula Vinculante nº 17, ressaltou sua compreensão acerca da jurisprudência da Corte, no que também não foi questionada. Eis a transcrição:
“Senhor Presidente, eu também estou de acordo, desde que o Tribunal, expressamente, compreenda que, na hipótese excepcional de que o pagamento seja feito mais além deste prazo, não se volte a contar a partir da origem, ou seja, todo o ano de graça que a Súmula visa a conceder.”
O Ministro Lewandowski, relator do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral referido acima, já havia afirmado, em outra oportunidade, no bojo do RE 488.619-DF, que “evidenciada a ocorrência de mora, devem incidir juros, mas apenas no período que extrapolou o prazo fixado no artigo 100, § 1º, da CF.”
O Ministro Dias Toffoli, por sua vez, em julgados recentes, enfrentou a questão diretamente, e deixou assentado que, nos casos em que houver atraso, os juros incidem a partir do término do prazo. Seguem alguns trechos:
“(…) conheço do agravo e dou parcial provimento ao recurso exextraordinário para afastar a incidência de juros moratórios e compensatórios sobre o parcelamento constitucional previsto para seu pagamento, qual seja, até o final do exercício seguinte, sendo os juros devidos em caso de atraso no pagamento das parcelas e tão-somente a partir daí.”(AI 648.619-RJ, DJE 07/06/2011).
União interpõe recurso extraordinário, com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, contra acórdão da Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho, assim ementado:
AGRAVO. DECISÃO MONOCRÁTICA. PRECATÓRIO COMPLEMENTAR. ATRASO NO PAGAMENTO. JUROS DE MORA. PARÁGRAFO 2º DO ARTIGO 100 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ARTIGO 896, § 2º, DA CLT E SÚMULA Nº 266 DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO.
1. Restrita a disposição do parágrafo 2º do artigo 100 da Constituição de 1988 ao disciplinar o prazo para o pagamento dos precatórios judiciais, não há como violar sua literalidade a determinação de incidência de juros de mora nos casos em que se verifica o atraso no pagamento de precatório complementar.
2. Agravo a que se nega provimento.
(…)
Ao apreciar o mérito, o Plenário confirmou a jurisprudência consolidada nesta Corte no sentido da inconstitucionalidade da incidência de juros de mora no período entre a inclusão do precatório em orçamento até o prazo constitucional previsto para seu pagamento, qual seja, até o final do exercício seguinte. O julgamento restou assim ementado:
CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIOS. JUROS DE MORA. INCIDÊNCIA DURANTE O PRAZO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO PARA SEU PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ART. 100, § 1º (REDAÇÃO ORIGINAL E REDAÇÃO DADA PELA EC 30/2000), DA CONSTITUIÇÃO.
I – QUESTÃO DE ORDEM. MATÉRIA DE MÉRITO PACIFICADA NO STF. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA. DENEGAÇÃO DA DISTRIBUIÇÃO DOS RECURSOS QUE VERSEM SOBRE O MESMO TEMA. DEVOLUÇÃO DESSES RE À ORIGEM PARA ADOÇÃO DOS PROCEDIMENTOS PREVISTOS NO ART. 543-B, § 3º, DO CPC. PRECEDENTES: RE 579.431-QO/RS, RE 582.650-QO/BA, RE 580.108-QO/SP, MIN. ELLEN GRACIE; RE 591.068-QO/PR, MIN. GILMAR MENDES; RE 585.235-QO/MG, REL. MIN. CEZAR PELUSO. II – Julgamento de mérito conforme precedentes.
III – Recurso provido (DJe de 20/2/09).
Demais disso, o Tribunal Pleno, em sessão do dia 29/10/09, aprovou o Enunciado Vinculante nº 17, deste Tribunal, com a seguinte redação:
Durante o período previsto no parágrafo 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos.
Ante o exposto, nos termos do artigo 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, conheço do recurso extraordinário e lhe dou provimento para afastar a incidência de juros moratórios entre a data de inclusão do precatório no orçamento e o prazo constitucional previsto para seu pagamento, qual seja, até o final do exercício seguinte. (RE 594.177-MG, DJE 09/11/2010).
Como se vê, à exceção do Ministro Marco Aurélio, que se mantém irredutivelmente fiel à sua convicção segundo a qual os juros de mora devem sempre incidir até o efetivo pagamento, independentemente de quando este venha a ocorrer, tendo, assim, ficado vencido nos julgamentos dos REs 298.616-SP (junto com o Ministro Carlos Velloso) e 591.085-MS, bem como quando da apreciação da PSV 32, não há, entre os Ministros da atual composição da Corte, nenhuma resistência à tese que pretende ver o Governador do Estado de São Paulo expressamente contemplada na PSV 59.
Destaco, ainda, não haver registros de precedentes em que o STF tenha tratado, em sede de Reclamação Constitucional, do alcance da Súmula Vinculante 17 nos termos ora debatidos. Os inúmeros precedentes encontrados determinam a exclusão dos juros no período constitucional, sem, todavia, evidenciar a questão específica aqui discutida.
Diante do exposto, conclui-se que a tese da não incidência de juros moratórios no período previsto no artigo 100, § 1º, da Constituição Federal, inclusive nas hipóteses em que o pagamento extrapolar referido prazo, encontra firme respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Assim, embora entenda que referido entendimento já se encontra albergado pelo enunciado da Súmula Vinculante 17, considero que as divergências de aplicação que se tem verificado nos Tribunais pátrios, especialmente no TST, justificam a pertinência do pedido de revisão apresentado pelo Governador do Estado de São Paulo.
Autor: Gustavo Leonardo Maia Pereira, Procurador Federal, lotado na Adjuntoria de Contencioso – Tribunais Superiores – da PGF, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Especialista em Direito Processual Civil pelo IBDP/UNISUL/LFG e Ex-Procurador do Estado de Goiás.
Fonte: www.jus.com.br