Gilberto Melo

A Polêmica da Correção Monetária de Débitos Judiciais

 
*Gilberto Melo

1. O cidadão e a matemática
É conhecida de todos nós a dificuldade que as pessoas em geral têm com as mais simples operações matemáticas. Vivemos num país que ainda não conseguiu demonstrar estabilidade e segurança aos cidadãos, os quais o mantém vivo e produtivo. O sentimento de segurança que cada cidadão merece ter inclui segurança física, segurança quanto à saúde, segurança econômica, segurança quanto ao cumprimento do correto papel dos legisladores e segurança quanto ao correto desempenho do Judiciário de fazer cumprir a Lei, além de vários outros que não vamos aqui enumerar.

2. A segurança econômica
Vamos, entretanto, centrar o foco em uma das facetas da segurança: A segurança econômica. O Brasil teve nada menos que sete mudanças de moeda desde a instituição do “Cruzeiro” em 1942, cinco delas de 1986 a 1994. Dessas sete modificações na moeda de curso legal no Brasil, cinco dividiram o padrão monetário por mil, uma delas dividiu por 2.750 e outra apenas mudou o nome da moeda. A mudança implementada pelo Plano Real foi a mais complicada pelo fato de não se poder apenas voltar a vírgula três casas para trás como se fez nos planos em que se dividiu a moeda por mil. No caso da divisão por 2.750, só com calculadora…

3. O conhecimento matemático

Até então só com uma calculadora comum seria possível manejar valores monetários, mas ao cidadão é exigido também que saiba ainda sobre atualização de valores, diferentes índices de inflação, juros, cálculos exponenciais, etc., que já demandam uma calculadora financeira. Essa necessidade surgiu porque ao lidar com crediário, contas correntes bancárias, aplicações, empréstimos, pagamentos de contas, etc., o cidadão precisa dominar a alquimia matemática processada pelos agentes econômicos ao longo da conturbada legislação, especialmente com referência aos planos econômicos. Então voltamos à primeira sentença deste texto: “É conhecida de todos nós a dificuldade que as pessoas em geral têm com as mais simples operações matemáticas”.

4. Os tormentosos planos econômicos
Como se não bastasse apenas o tumulto criado com a substituição de moedas, as mudanças no padrão monetário quase sempre vieram no bojo dos famigerados planos econômicos, com modificações no estado e no valor das coisas que sacudiram o país como se fossem terremotos. Estes planos muitas vezes introduziram mudanças na forma de se corrigir os valores diante da inflação descontrolada, gerando as repulsivas manobras cirúrgicas chamadas “expurgos inflacionários”. Por várias vezes assistimos ao estabelecimento do caos econômico em profundidade, cabendo ao Judiciário fazer cumprir a Lei e restabelecer os direitos do cidadão e das instituições.

5. O preparo do Judiciário para a devida resposta ao cidadão

Vejamos então, se o Judiciário tem segurança ao decidir e ao transformar em dinheiro os direitos postulados e reconhecidos pela Justiça Brasileira. Entendemos que a segurança só vem após longo tempo, pois na interpretação da parafernália econômica produzida por sucessivos governos o Juiz, como cidadão, tem também dificuldades. Para dar ao Julgador segurança ao tratar de matérias econômico-financeiras e ao cidadão a segurança de que o valor econômico dado à sua pretensão corresponde ao que faz jus, o Judiciário deve prover a sociedade de ferramentas práticas que facilitem a atualização de valores antigos. O mínimo que os Tribunais teriam que fazer seria uniformizar a utilização das tabelas de atualização monetária de valores pretéritos, visando preservar o poder aquisitivo da moeda.

6. A uniformização das tabelas de atualização monetária de débitos judiciais

E assim ocorre, vários Tribunais tem as suas tabelas de atualização de débitos judiciais disponíveis na Internet, publicam em jornais ou deixam disponível para cópia nas suas instalações, alguns deles não dando a necessária publicidade a estes instrumentos de atualização de valores. As tabelas de fatores de atualização de débitos judiciais são fundamentais para o estabelecimento da ordem econômica no nível que mais interessa ao cidadão e às instituições, ou seja, como o seu dinheiro é afetado diante da inflação. Além de servirem para a atualização monetária de débitos judiciais estas tabelas acabam por serem usadas como referência pelas construtoras, imobiliárias, condomínios, agentes econômicos em geral e até para transações entre particulares, uniformizando e dando transparência aos cálculos de atualização, através de fatores de correção que embutem todas as mudanças ocorridas no padrão monetário nacional e permitem a atualização de valores por uma simples operação de multiplicação.

7. A conjuntura atual das tabelas de atualização
As tabelas de atualização monetária têm, no entanto, que enfrentar a questão dos expurgos inflacionários para assegurar ao cidadão e às instituições a tranquilidade de que o poder de compra da moeda estaria sendo preservado. Infelizmente não é isto que acontece, pois as tabelas de atualização monetária utilizadas pelos Tribunais são variadas, se utilizam de indexadores diversos e levam o usuário a valores atualizados totalmente discrepantes.No âmbito da Justiça Estadual foi dado um grande passo quando da realização do 11º ENCOGE – Encontro Nacional do Colégio dos Corregedores Gerais da Justiça dos Estados e do Distrito Federal, em Agosto de 1997, na grandiosa cidade de São Luís do Maranhão. Dentre as várias teses defendidas naquele encontro figurou a tese da uniformização da tabela de fatores de atualização monetária para todos os estados na jurisdição da Justiça Estadual. Esta tese foi amplamente debatida entre os Corregedores Gerais de Justiça e aprovada por unanimidade, contemplando todos os percentuais expurgados já decididos pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, instância máxima para a matéria. Assegurou-se a disponibilização da tabela de atualização monetária no site do autor na Internet por todos os meses a partir de Agosto de 1997, critério aprovado integralmente por Grupo Técnico Interinstitucional formado pelo CNJ e constante do PProv 0002288-81.2019.2.00.0000, mas infelizmente alguns Tribunais Estaduais ainda não implementaram esta uniformização.

8. Os benefícios da uniformização
Os melhores testemunhos dos benefícios acarretados pela uniformização das tabelas de atualização monetária podem ser prestados pelas Corregedorias dos Estados que já implantaram a tabela uniforme, a qual já inclui os percentuais expurgados pelos planos econômicos e já pacificados pela Corte Especial do STJ. Sobre os benefícios advindos da uniformização das tabelas de atualização monetária, frisamos:

• A despeito de se tratar de matéria afeta ao poder judicante do julgador, não há inconveniência alguma de que as Corregedorias publiquem uma tabela bem fundamentada, a qual serviria de referência para cálculos judiciais, desde que o juiz da causa não determinasse diferente critério de correção monetária;
• A divulgação de uma tabela de referência é de grande alcance social, uma vez que pacifica os conflitos nesta área;  a falta de divulgação e publicação de uma tabela de referência, por sua vez, abre a possibilidade de as partes se proporem a uma verdadeira alquimia matemática no sentido de verem atendidos os seus interesses;
• O alcance de uma tabela de débitos judiciais é muito amplo, chega a ser utilizada por condomínios, construtoras e instituições em geral, além de tirar do juiz o pesado encargo de decidir sobre matéria econômica, o que é muito complexo num país de memória inflacionária, que já foi objeto de debate aprofundado nos Tribunais Superiores.

Uma tabela ideal deve conjugar o entendimento da legislação e doutrina, acrescendo-se o entendimento da construção pretoriana pacificada na Corte Especial do STJ, Corte máxima para a matéria, como o fez a tabela aprovada pelo 11º ENCOGE para todos os Estados e para o Distrito Federal.

9. Ações a serem implementadas

A sociedade clama com veemência que os Tribunais Estaduais implementem o que já foi devidamente examinado e decidido pelo Colégio de Corregedores. Reivindica, ainda, que os Tribunais Federais e Tribunais Especializados do Trabalho, que têm legislação específica ou interpretação diferente da Justiça Estadual, se assegurem de que em todas as unidades da Federação sejam adotados os mesmos critérios de atualização monetária de valores, incluídos os percentuais expurgados pacificados pelos Tribunais Superiores.

• A Justiça Estadual teria, então, totalmente implementada a posição uniforme já adotada que contempla a inclusão dos percentuais expurgados;
• A Justiça do Trabalho zelaria para que uma única tabela tivesse vigência para todas as unidades da Federação. Não se fala de expurgos na Justiça do Trabalho, apesar de existirem;
• A Justiça Federal, que utiliza quatro tabelas para diferentes propósitos, uma delas que é comum com a Justiça do Trabalho, incluiria nas três primeiras os percentuais expurgados objeto de Súmulas do TRF e pacificação na Corte Especial do STJ, e zelaria para que estas tabelas fossem adotadas em todas as Seções Judiciárias.

Existiriam, então, para todas as unidades da Federação, tabelas uniformes de fatores de atualização monetária de débitos judiciais, para utilização em todos os Estados da Federação, incluindo os percentuais expurgados pacificados pelos Tribunais Superiores: Uma tabela da Justiça Estadual, outra da Justiça do Trabalho, uma da Justiça Federal para débitos previdenciários, outra para desapropriações, e mais uma para débitos em geral.

10. Conclusão
Não desconhecemos que esta tarefa é árdua e tormentosa, de que há várias providências a promover para a uniformização, mas é o que o cidadão precisa e reivindica. O resultado imediato deste esforço será a diminuição de um grande volume de processos que enchem as prateleiras do Judiciário em todo o país, discutindo o efeito da corrosão inflacionária sobre a moeda. Em havendo a uniformização do entendimento da atualização monetária dos débitos judiciais com a inclusão dos percentuais inflacionários expurgados, perderão objeto as ações ou os recursos que discutam a adequada preservação do poder aquisitivo da moeda, tornando mais célere e eficaz a prestação jurisdicional.

Notas:

1. Após a publicação deste artigo em 02.09.2002, a Resolução CSJT/008/2005 instituiu a Tabela Única para a Justiça do Trabalho.

2. A Resolução CJF Nº 561, de 02.07.2007, por sua vez, aprovou a nova orientação de procedimentos para os cálculos na Justiça Federal, unificando as tabelas utilizadas em todas as seções judiciárias e incluindo nelas os percentuais expurgados pacificados pela Corte Especial do STJ. Com esta orientação criou-se mais uma tabela, a de indébitos tributários.

3. A Lei 11.960 de 29.06.2009 instituiu a aplicação da TR (índice de remuneração da Caderneta de Poupança) a partir de sua publicação, o que gera uma nova tabela uniforme para a Justiça Estadual, que conteria a mesma sequência de indexadores da tabela uniforme já aprovada, apenas com a introdução da TR em lugar do INPC/IBGE a partir de 30.06.2009.

4. Houve, ainda, a introdução de novo critério para a atualização monetária de precatórios, através da Emenda Constitucional 62, de 09.12.2010, gerando outra tabela de atualização nos termos da anterior, mas com a introdução da TR apenas a partir de 09.12.2009.

5. Com a publicação da Resolução 303/2019 do CNJ foram criadas algumas tabelas de fatores de atualização para débitos da fazenda e precatórios.

6. Resta, portanto, que os Tribunais Estaduais que ainda não o fizeram, implementem a tabela uniforme aprovada pelo XI ENCOGE em 22.08.1997, iniciativa pioneira do Colégio de Corregedores com vistas à uniformização de critérios de atualização de débitos judiciais, critério já referendado por Grupo de Trabalho Interinstitucional no CNJ.

* O Autor é parecerista jurídico-econômico-financeiro, especialista em liquidação de sentença e cálculos judiciais, extrajudiciais e de precatórios, propositor da tabela uniforme de fatores de atualização monetária para a Justiça Estadual aprovada no 11º ENCOGE, engenheiro, advogado e pós-graduado em contabilidade, com site em www.gilbertomelo.com.br.