Gilberto Melo

Análise jurídico-econômica dos juros legais de mora

O Código Civil conta com uma nova disciplina para a os juros legais de mora. A nova redação do art. 406 do Código Civil foi dada pela Lei 14.905 de 28 de junho de 2024.

Anteriormente, líamos: “Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Agora, lemos: “Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal. § 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código. § 2º A metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação serão definidas pelo Conselho Monetário Nacional e divulgadas pelo Banco Central do Brasil. § 3º Caso a taxa legal apresente resultado negativo, este será considerado igual a 0 (zero) para efeito de cálculo dos juros no período de referência.

O juro legal se aplica aos casos em que os juros incidentes sobre uma dívida “não forem convencionados, ou […] o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei”. O caso mais comum é o da mora em dívida decorrente de ilícito civil. Há alguns outros casos.[1]

A nova redação do art. 406 pode sugerir que tenha havido uma redução da taxa dos juros legais de mora. A redação antiga previa, ainda que indiretamente, a aplicação da taxa Selic; a nova redação prevê, expressamente, a aplicação da taxa Selic, deduzido o índice de atualização monetária.

Mas essa conclusão é enganosa. Para compreender os efeitos práticos da mudança redacional, é preciso fazer algumas contas. Neste artigo, vamos apresentá-las de maneira didática.

  1. Juro legal sob a antiga redação do art. 406

A redação anterior do art. 406 do Código Civil trazia dificuldades. Tratamos do tema em anteriormente. Nos tribunais, opunham-se duas posições principais relacionadas à determinação da taxa legal.

De um lado, havia a posição de que a dívida deveria ser corrigida pela taxa Selic, calculada da forma linear. Assim, haveria capitalização dos juros de forma simples, isto é, com a mera “soma” dos percentuais de juros mensais incidentes sobre o valor original da dívida durante o período da mora. Esta posição prevaleceu no STJ em julgamento recente[2] e está refletida no Gráfico 1, abaixo, sob a rubrica de “selic (soma)”, em azul.

A outra posição é a de que a dívida deveria ser corrigida aplicando-se a correção monetária mais 1% ao mês. Esta posição, vencida no STJ, está refletida em amarelo no Gráfico 1.

No eixo horizontal do Gráfico 1 estavam demarcados, mês a mês, os últimos 25 anos. No eixo vertical indicava-se a taxa acumulada, que corresponderia aos juros (e atualização monetária) acrescidos ao principal caso a dívida fosse paga (e a mora fosse purgada) naquele momento.

Para fins comparativos, o Gráfico 1 também indicava, em laranja, sob a rubrica de “Selic (multi)”, a taxa juros com capitalização composta que remunera a dívida pública mobiliária brasileira; isto é, a taxa Selic determinada pelo COPOM. Nesse caso, a capitalização dependeria da “multiplicação” dos percentuais de juros mensais incidentes sobre dívida durante o período da mora.

E, por fim, o Gráfico 1 também indicava, em cinza, o IPCA, que é o índice de correção monetária oficial.

Três conclusões importantes.

Primeira: no curtíssimo prazo (Zona 1), todos os critérios situam-se em patamar parecido. Então, se o processo judicial se resolver muito rapidamente, ou o período da mora for muito curto, faz pouca diferença prática.

Segunda: no médio e longo prazo (Zona 2), a taxa Selic “soma” (azul, adotada pelo STJ) ficaria bem abaixo de correção monetária mais 1% ao mês (amarela), e ainda muito mais abaixo da taxa Selic “multi” (laranja).

Vale dizer: à medida em que a mora se estendesse no tempo, o critério para cálculo dos acréscimos começaria a fazer grande diferença. E, em geral, a Selic “soma” superaria por pouco a inflação. Porém, estaria sempre bem abaixo da taxa Selic “multi”.

Assim, um devedor solvente teria uma vantagem patrimonial se, em vez de pagar, decidisse prolongar o processo e investir o valor devido em uma aplicação conservadora (e.g. Tesouro Direto). No geral, haveria aqui um incentivo à não purgação da mora e, por consequência, a processos mais longos, acordos tardios, e, em síntese, à litigância.[3]

Da ótica de um devedor insolvente, por outro lado, haveria apenas um acréscimo módico do valor da dívida. Teríamos aqui, então, implicitamente, uma espécie de apoio do Judiciário ao devedor que enfrenta dificuldades financeiras.[4]

Terceira conclusão importante: em algumas situações excepcionais (como na Zona 3, que coincide aproximadamente com o período da pandemia de Covid), a Selic “soma” (adotada pelo STJ) ficava abaixo do IPCA. Ou seja, criava-se um juro econômico negativo.

Vale dizer: o valor real da dívida estaria caindo, porque seu reajuste não cobriria sequer a inflação. Isto seria possível porque a taxa Selic com capitalização simples (isto é, a Selic “soma”) jamais foi uma taxa de mercado.

Haveria, então, uma espécie de “super” incentivo ao devedor solvente para não pagar. E, ao mesmo tempo, uma espécie de “super” apoio do Judiciário ao devedor insolvente. Esta era, como apontamos, uma situação cuja legalidade e constitucionalidade geravam dúvidas, a despeito da chancela do STJ.

  1. Juro legal sob a nova redação do art. 406: exemplo numérico

Ao dizer que a “taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic)”, o legislador não tratou expressamente da forma de capitalização dos juros da taxa Selic. O Gráfico 1 acima mostrou a enorme diferença prática entre as capitalizações composta (Selic “multi”) e simples (Selic “soma”).

Em vez de definir expressamente a matéria, o art. 406 agora delega ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a competência para formular a “metodologia de cálculo da taxa legal e sua forma de aplicação”. Aqui começam as dificuldades, porque há, na verdade, não uma, mas duas questões relevantes que não estão explicitamente determinadas na nova redação do art. 406.

A primeira diz respeito à forma de atualização monetária do valor da dívida, que pode ser “cumulada” ou “separada”. Um pequeno exemplo numérico ilustra essa diferença nada irrelevante.

Suponha uma dívida de R$ 100 no mês de março de 1999, primeiro mês da série que utilizamos nos nossos gráficos. A inflação mensal naquele mês de março de 1999, medida pelo IPCA, foi de 1,1%. O rendimento mensal da Selic naquele mesmo mês foi de 3,33%.

Uma possibilidade é atualizar monetariamente, ao fim do mês, a dívida de R$ 100 para R$ 101,10. Então, sobre este valor de R$ 101,10 incidir a Selic “deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389” – isto, incidir a Selic “real” do mês, que á a Selic nominal (3,33%) deduzida da inflação medida pelo IPCA (1,1%), correspondendo a 2,2057%.[5] Esta seria uma atualização “cumulada”. O valor corrigido da obrigação seria de R$ 103,33.

Outra possibilidade é incidir 1,1% de atualização monetária sobre R$ 100; e, separadamente, incidir a Selic “real” de 2,2057% também sobre o valor inicial de R$100 (em vez de sobre o valor corrigido, como fizemos logo acima). Esta seria uma atualização “separada”. O valor corrigido da obrigação seria de R$ 103,30.

Naturalmente, com a atualização cumulada o valor da dívida fica acima da atualização separada (R$ 103,33 em vez de R$ 103,30). A diferença aqui é de apenas três centavos porque neste exemplo estamos lidando com valores pequenos e período curtíssimo. Com valores e períodos maiores, a diferença também cresce.

A segunda questão deixada em aberto nesta nova redação do art. 406 é aquela à qual já aludimos: será a taxa Selic a ser utilizada aquela mesma aplicada à dívida pública do governo, orientada por decisões do COPOM – isto é, a Selic “multi”? Ou, do contrário, na linha do precedente recente do STJ, será utilizada a Selic com capitalização simples – isto é, a Selic “soma”?

Vejamos como ficaria nos meses de março e abril de 1999, supondo a atualização cumulada. A obrigação é de R$100. A inflação em março de 1999 foi de 1,1%. Em abril foi de 0,56%. A Selic nominal no mês de março de 1999 foi de 3,33% (e a Selic “real” naquele mesmo mês foi de 2.2057%, como vimos). Em abril, a Selic nominal foi de 2,35%; a Selic “real” de abril, portanto, foi de 1,78%.

Calculando o valor da dívida de março a abril de 1999, com a capitalização composta para esses dois meses, o seu valor final fica em R$ 105,76. Já com a capitalização simples, o valor final da dívida fica em R$ 105,72. A diferença, aqui, é de quatro centavos.

  1. Juro legal sob a nova redação do art. 406: gráfico comparativo

A existência de duas questões não disciplinadas expressamente na nova redação do art. 406 do Código Civil cria, então, quatro possibilidades cálculo dos acréscimos legais da mora. São elas:

  1. Atualização cumulada da obrigação e capitalização composta.
  2. Atualização separada da obrigação e capitalização simples.
  3. Atualização cumulada da obrigação e capitalização simples.
  4. Atualização separada da obrigação e capitalização composta.

Para visualizarmos a diferença prática, podemos aplicar esses quatro critérios para o período de março de 1999 a abril de 2024. Vejamos o Gráfico 2, no qual eixo vertical indica a taxa acumulada referente aos encargos da mora, incluindo juros e atualização monetária, que seria aplicada ao principal da dívida caso fosse paga em cada mês discriminado no eixo horizontal.

Este Gráfico 2 toma por base condições de juro e inflação do passado; elas serão diferentes no futuro. Mas o exercício sugere o seguinte:

  • Como esperado, os maiores acréscimos surgem com atualização cumulada e capitalização composta (linha roxa).
  • Os menores acréscimos, também como esperado, surgem com atualização separada e capitalização simples (linha vermelha).
  • Juros compostos com atualização separada (linha verde) crescem a um ritmo menor do que juros simples com atualização cumulada (linha amarela).
  • A comparação entre as linhas verde e amarela, portanto, e de maneira surpreendente, mostra que a forma de atualização da dívida surge como mais decisiva do que a forma de capitalização dos juros.
  1. Comparação com Selic “multi”, Selic “soma” e IPCA + 12%

A compreensão das repercussões econômicas da nova redação do art. 406 se completa com a comparação dos quatro critérios refletidos no Gráfico 2 acima com os critérios que se contrapuseram nos recentes embates judiciais, especialmente no precedente recente do STJ.

O Gráfico 3, derivado do gráfico anterior, apresenta esses quatro critérios em linhas pontilhadas, ao lado de:

  • Critério de Selic “soma”, posição vencedora recentemente no STJ (linha azul, número 6)
  • Critério de atualização pelo IPCA mais juro moratório de 1% ao mês, derrotado no STJ (linha cinza, número 7).
  • Remuneração da dívida pública mobiliária federal (Selic “multi”, linha laranja, número 5).

Vemos o seguinte:

  • Em comparação com a decisão recente do STJ, sob qualquer critério, a nova redação do art. 406 aumenta os acréscimos sobre a obrigação. Todas as linhas pontilhadas estão acima da linha azul (número 6).
  • O critério de atualização cumulada e capitalização composta (linha roxa, número 1) fica acima até mesmo da Selic “multi” (taxa de juros incidente sobre a dívida pública mobiliária federal, como explicado).
  • O critério de atualização separada e capitalização simples (linha vermelha, número 2) fica abaixo da tese vencida recentemente no STJ (linha cinza, número 7).
  • O critério de atualização cumulada e capitalização simples (linha amarela, número 3), assim como o critério de atualização separada e capitalização composta (linha verde, número 4), ficam acima da tese vencida no STJ (linha cinza, número 7).
  1. Resumo e conclusões

A análise econômica desenvolvida aqui indica o seguinte:

1. A reforma do art. 406 eliminará a possibilidade de juro econômico negativo ensejada pela recente decisão do STJ.

2. A magnitude dos acréscimos da mora no tempo depende tanto da forma de atualização da obrigação (cumulada ou separada), quanto da forma de capitalização dos juros (simples ou composta).

3. No período de 1999 a 2024, a forma de atualização da obrigação teria sido mais decisiva para o crescimento da taxa de juros no tempo do que a forma de capitalização dos juros.

4. Qualquer um dos quatro critérios aqui discutidos para interpretação do art. 406 aumentará os acréscimos da mora e, assim, reduzirá o espaço de oportunismo por parte de devedores solventes.

5. Os critérios que trazem maiores acréscimos tendem a reduzir o espaço de oportunismo por devedores solventes de maneira mais decisiva.

6. Os critérios que trazem menores acréscimos, por outro lado, beneficiam devedores insolventes.

Há ainda uma série de outros problemas de que aqui não nos ocupamos. Em particular, podem surgir nos tribunais questionamentos sobre a extensão da delegação de competências ao CMN. Por exemplo:

7. Terá o CMN competência para definir tanto a forma de atualização (cumulada ou separada), quanto a metodologia de cálculo do juro de mora (simples ou composta)? Ou apenas uma das duas questões? Como exatamente o CMN exercerá suas competências? Não são temas óbvios, e podemos tratar deles em outra oportunidade.

8. Por fim, haveria eventual vício de constitucionalidade ao se atribuir ao CMN poderes para definir a forma de atualização da dívida e a metodologia de cálculo dos juros de mora? Há aqui uma questão a respeito dos limites substantivos para a delegação de competências pelo Congresso Nacional para órgãos do executivo, diante da redação do art. 22, I, da Constituição Federal[6].


[1] Por exemplo, a dívida decorrente de gestão de negócios (art. 869), o mútuo em que as partes não estipulam a taxa de juros (art. 591), os créditos do mandatário contra o mandante na hipótese do art. 677, dentre outros.

[2] STJ, REsp nº 1.795.982-SP, Rel.: Min. Luis Felipe Salomão, Corte Especial, j. 06.03.2024.

[3] A extensão dessa “vantagem patrimonial” do devedor depende também do imposto de renda pago sobre a rentabilidade do investimento, do valor dos honorários de advogado e de eventual multa moratória ou compensatória.

[4] Não nos esqueçamos que no Brasil, apesar da inflação estar mais ou menos domada, vivemos ainda sob a égide do que um dos autores deste texto chamou de “normalização incompleta” dos mercados de crédito, dominados por taxas de juros extremante elevadas. Cf. Bruno Meyerhof Salama, Crédito Bancário e Judiciário: Condutores Institucionais da Superlitigância, in O Judiciário e o Estado Regulador Brasileiro (Mariana Prado, ed.), 2016, disponível em https://works.bepress.com/bruno_meyerhof_salama/127.

[5] A taxa Selic “real” é a taxa básica de juros dita “nominal” – aquela que reflete a variação de preços no período relevante – expurgada dos efeitos da inflação. Calcula-se a taxa de juros real, supondo-se sua capitalização composta, pela divisão do fator da taxa Selic nominal pelo fator de variação do IPCA, ambos referentes ao mesmo mês.  Assim, o fator taxa Selic real para março/1999 é (1+0,0333) / (1+0,011) = 1,022057, de modo que a taxa Selic real para aquele mesmo mês seria (1,022057-1) × 100 = 2,2057%.

[6] Constituição Federal, Art. 22: “Compete privativamente à União legislar sobre […] direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho.”

Autores: Bruno Meyerhof Salama e Alberto L. Barbosa Junior

Fonte: portal.fgv.br