Introdução
Há condomínios sem convenção condominial, registrada ou não[1]. A par das dificuldades gerenciais, a rotina do dia a dia é regulada pelo Código Civil[2].
As alterações sobre a aplicação da taxa de juros moratórios pela lei 14.905/24[3] trouxeram mudanças significativas na rotina dos condomínios edilícios sem convenção ou sem taxa convencionada na convenção, pois os devedores passaram a ser cobrados de modo diverso daquele já sedimentado por décadas: 1% de juros moratórios por mês de inadimplência[4].
Nos condomínios edilícios com previsão dos juros moratórios na convenção, a atenção se voltará ao teto desses juros remuneratórios. Naqueles sem convenção ou sem previsão de juros moratórios na convenção, o foco será a forma da cobrança e a possibilidade de instituição dos juros por meio diverso da convenção.
A lei 14.909/24 também padronizou o índice de atualização monetária quando inexistente essa previsão nas convenções condominiais.
Diante das novas mudanças, será necessária atenção para evitar-se insegurança jurídica em prejuízo à recomposição do patrimônio do condomínio nas hipóteses da sempre lamentável execução judicial da dívida. Vale lembrar que as alterações legislativas aplicam-se às relações obrigacionais como um todo, o que transbordará aquilo aqui tratado, embora as balizas gerais lhe sirvam.
1 Os efeitos do atraso no pagamento do condomínio
O atraso no pagamento da cota condominial implica prejuízo à conservação das áreas comuns do condomínio e dos serviços que atendem aos condôminos, pois a finalidade da conta condominial é rateio de despesas condominiais aprovadas em assembleia.
A inadimplência, especialmente em níveis altos, traduz desvalorização do patrimônio de todos os coproprietários pela deterioração das áreas comuns e declínio dos serviços em favor dos ocupantes. A esse quadro acrescente-se que é incorreta a aplicação pragmática do valor da cota condominial, isso é, desprezando as unidades inadimplentes, porque uma vez adimplido o débito pelas unidades desprezadas na fixação do rateio se observará o fenômeno lucro, contrário ao art. 1336, I, do Código Civil[5], pois a arrecadação terá sido maior do que as despesas autorizadas.
De acordo com a nova lei, o atraso no pagamento da cota condominial acarreta multa moratória de 2%, percentual que recebe críticas porque considerado baixo em comparação com outras operações financeiras, como o cheque especial e o cartão de crédito.
Imagina-se, agora, a possibilidade de inexistência de juros moratórios aplicados à inadimplência ou sua aplicação em patamares inferiores a 1% ao mês e temos o cenário controverso trazido pela lei 14.905/2024.
2 Juros moratórios: Ou convencionados ou os juros legais
Os condomínios edilícios sem previsão de juros moratórios na convenção deverão usar os juros legais para os casos de inadimplência a partir de 30 de agosto de 2024; para os condomínios com percentual de taxa de juros moratórios fixados na convenção não houve qualquer mudança.
A lei 14.905/24 alterou o parágrafo primeiro do art. 1.336, do Código Civil para dar-lhe nova redação que, em síntese, substituiu a previsão da taxa de juros moratórios de 1% ao mês pelos juros legais[6], quando não estiver convencionada outra taxa.
Como forma de evitar interpretações sobre o que seriam juros legais, a lei 14.905/24 definiu que os juros legais – ou taxa legal – são compostos pela Selic com o abatimento da correção monetária que integra o índice[7], cabendo ao Conselho Monetário Nacional fixar a metodologia desse cálculo, divulgando-a por meio do Banco Central do Brasil[8].
Nessa realidade, dada a flutuação da Selic e do IPCA, pode ser aferido índice de taxa de juros tanto positivo quanto negativo, superior ou inferior à taxa de 1% ao mês, razão pela qual será impossível aferição do saldo devedor sem auxílio dos índices oficiais, de modo diverso daquele aplicado até então[9], especialmente na hipótese de judicialização da cobrança.
2.1 O teto dos juros moratórios convencionados e os limites da convenção
Ante a possibilidade de aplicação de taxa de juros moratórios inferiores a 1% ao mês, será natural que muitos condomínios edilícios tentem regular esse percentual e até majorá-lo em patamar superior ao percentual de 1% ao mês, fixando-o na convenção condominial.
A legislação deve ser interpretada como unidade para se evitarem contradições que levem a insegurança. Ao longo dos últimos anos, observa-se que o legislador tem privilegiado a autonomia das vontades, primando pela interferência mínima do Estado nas relações paritárias, isso é, aquelas em que as partes possuem equivalência de armas, caso das relações entre condôminos num condomínio edilício. Exemplo disso é a lei 13.874/19.
Isso não implica afirmar que os condôminos possuem ampla liberdade para a fixação da taxa de juros[10] [11] e a lei 14.905/24[12] não contribuiu para dirimir a dúvida.
A começar, a convenção condominial é ato-norma, de caráter estatutário[13], oponível não somente aos signatários, mas aos ocupantes das unidades autônomas, presentes e futuros. Não é contrato, portanto, não cabendo arguição sobre aplicação da lei da usura[14], embora esta lei tenha servido como parâmetro para aplicação dos juros moratórios em momento anterior à lei 14.905/24, autorizando a aplicação do dobro da taxa legal.
Noutro giro, tampouco é obrigação tributária, não havendo se falar em observância do art. 161, parágrafo primeiro, do Código Tributário Nacional.
Portanto, a ponderação que se faz é sobre a possibilidade da convenção fixar o dobro da taxa legal, de modo abstrato, como sendo a taxa de juros moratórios. Desde já se argumenta que acompanhando a evolução legislativa – que vem se valendo de normas de caráter geral -, inexiste fundamento para impedir a mesma possibilidade ao ato-norma, especialmente diante da flutuabilidade dos juros legais após a lei 14.905/24.
Há na doutrina quem argumente não se tratar sequer de cláusula geral e sim de regra, pois “se aplica a casos concretos para: atribuir poderes, faculdade e poder-deveres aos sujeitos de direito; dar solução a problemas da vida; resolver conflitos de interesse“[15].
Se a convenção pode fixar que a taxa será o dobro da taxa legal, quando a dobra for inferior a 1%, por exemplo, será aplicada taxa de 1% de juros moratórios.
Aqui se está diante de possível conflito de normas jurídicas, pois enquanto a lei 14.905/24 privilegia o percentual livremente pactuado, a previsão tal como acima exposta pode se revelar manobra com a finalidade de driblar a lei da usura, o que, inicialmente, implicaria a invalidade da convenção condominial nesse particular.
Contudo, é imperiosa a necessidade de análise ampla por parte da comunidade jurídica, sob o viés da função social da norma. Nunca é demais lembrar: a proteção deve ser do todo, do condomínio edilício, e não da propriedade exclusiva.
Nesse contexto, o atraso do pagamento sem sanção perceptível, o que ocorre quando os juros moratórios são ínfimos, é estimular o pagamento de contas “mais caras” com o sacrifício das mais baratas.
Essa crítica já se mostrava comum e frequente antes mesmo da lei 14.905/24, pois a multa de 2% é considerada ínfima quando comparada com outras obrigações comuns à população, como, por exemplo, o cartão de crédito e o cheque especial ou, mesmo, financiamentos veiculares.
Portanto, a fixação na convenção de percentual a ser aplicado caso a taxa de juros legais seja inferior a determinado patamar parece revestir-se de razoabilidade e estar de acordo com a função social, pois ao mesmo tempo que pune o devedor, estimula os demais condôminos ao pagamento da cota condominial. O ganho lateral é claro, não custa repetir: preserva-se a propriedade comum a todos, impedindo desvalorização pela ausência de conservação/manutenção, ou pela prestação defeituosa ou até mesmo nula de serviços condominiais.
2.2 A forma para convencionar sobre os juros moratórios e a correção monetária
Dois pontos exsurgem como importantes nesse debate. O primeiro é o questionamento sobre a possibilidade dos condomínios edilícios sem convenção disporem sobre a taxa de juros moratórios e o índice de atualização monetária por meios diversos da convenção, isso é, através de regulamentos internos ou assembleias gerais, para os quais o quórum de aprovação é a maioria simples, e não os 2/3 dos votos necessários à aprovação da convenção. O segundo é saber se seria possível aos condomínios edilícios com convenções omissas quanto à taxa de juros ou com previsão de 1% majorar a taxa com base em decisão assemblear cuja pauta não contemple a alteração da convenção.
O art. 1.334, do Código Civil, traz que a convenção deve prever as sanções a que estão sujeitos os condôminos ou possuidores e os juros moratórios são classificados como sanção. Vê-se, pois, que se trata de hipótese reservada à convenção condominial, observado o quórum privilegiado.
Portanto, a interpretação que melhor se coaduna com a lei é aquela que confere à convenção condominial dispor sobre os percentuais de taxa juros e o índice de correção monetária aplicados para a cobrança das cotas condominiais atrasadas, sendo nulas as disposições assembleares ou cláusulas de regulamento interno que disponham sobre o tema e que sejam aprovados por quórum inferior a 2/3 dos condôminos.
3 IPCA como índice de atualização monetária
Tal qual ocorreu com a taxa de juros moratórios, a lei 14.905/24 igualmente balizou a aplicação da correção monetária quando não convencionado o índice, fazendo opção pelo IPCA[16].
O legislador manteve a linha de valorização da manifestação de vontade, não intervindo nas relações obrigacionais livremente pactuadas. Em prestígio da segurança jurídica, contudo, optou por estabelecer o índice de correção monetária quando ausente sua previsão.
Conclusão
No caso de atraso no pagamento da cota condominial, a apuração do valor da dívida tornou-se mais complexa para os condomínios edilícios sem convenção ou com convenção omissa quanto ao percentual de taxa de juros, pois são necessárias informações e dados externos ao condomínio.
A lei 14.905/24 criou a figura do juro legal, definindo-o como o saldo apurado entre a Selic e o IPCA, rubrica de correção monetária que integra a Selic, e determinou ao Banco Central do Brasil disponibilizar informações sobre o metodologia desse cálculo. Na ferramenta “calculadora do cidadão” do Banco Central do Brasil já consta, inclusive, a possibilidade de correção de valores com base no critério dos juros legais.
Os juros legais são flutuantes, e podem, portanto, superar ou não a revogada taxa de juros moratórios de 1% ao mês. Os juros legais podem até obter percentual negativo, sendo que nessa hipótese o juro moratório aplicado para correção de valores inadimplidos será igual a 0.
Logo, a previsibilidade tão cara aos administradores e gestores condominiais recomenda a fixação em convenção do percentual da taxa de juros para o atraso no pagamento da cota condominial, o que implica ponderar sobre a possibilidade dos condomínios edilícios cujas convenções já a prevejam alterarem-na para que nelas conste que a taxa de juros será o dobro dos juros legais. Com essa providência, evita-se a insegurança jurídica que poderia advir da ausência de previsibilidade.
Registre-se: não é possível fixar taxa de juros moratórios por meio de decisões assembleares ou regulamento interno por tratar-se de hipótese restrita à convenção condominial, conforme art. 1.334, IV, do Código Civil.
A liberdade prevista na lei 14.905/24 para a pactuação da taxa de juros convencionais não é irrestrita e deve ser balizada pela legislação vigente. O legislador não contemplou os condomínios edilícios no rol das relações obrigacionais excluídas dos efeitos da lei 14.905/24.
1 Nas incorporações imobiliárias, a minuta preliminar da convenção de condomínio é obrigatória para registro do memorial de incorporação, na forma do art. 32, “j” da lei 4.591/64, devendo ser ratificada ou retificada pelos condôminos para que surta efeitos.
2 Aqui não se entrará na discussão sobre a revogação tácita ou ab-rogação do título I, da lei 4.591/64, que trata de condomínio, pelo Código Civil.
3 Lei 14.905/24.
4 Código Civil – art. 1336, parágrafo primeiro.
5 Código Civil – art. Art. 1.336. São deveres do condômino: I – contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção;
6 Código Civil – Art.1.336, § 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito à correção monetária e aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, aos juros estabelecidos no art. 406 deste Código, bem como à multa de até 2% sobre o débito.
7 A taxa legal mensal é determinada pela diferença entre a taxa Selic mensal e a taxa de variação do IPCA-15 – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15, ambos do mês anterior ao de referência. No caso de valores negativos, a taxa legal do mês será definida como zero. A atualização pela taxa legal utiliza a metodologia de juros simples, com acumulação das taxas mensais e a apuração de juros proporcionais (fração pro rata) com seis casas decimais. Os juros proporcionais (fração pro rata) serão resultado da multiplicação do juro diário, calculado utilizando-se a razão entre a taxa legal do mês de referência e o respectivo número de dias corridos do mês de referência, pelo número de dias corridos a ser apropriado. Para um maior detalhamento, veja a resolução CMN 5.171, de 29 de agosto de 2024.
8 Código Civil – art. 406, I
9 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Calculadora do cidadão. Correção de valores. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
10 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
11 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui.; e VIÉGAS, Francisco de Assis. Lei 14.905: limites à autonomia privada na pactuação dos juros de mora, publicado em 5 set. 2024, ambos com acesso em: 11 fev. 2025.
12 Art. 3º Não se aplica o disposto no decreto 22.626, de 7 de abril de 1933, às obrigações: I – contratadas entre pessoas jurídicas; II – representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; III – contraídas perante: a) instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; b) fundos ou clubes de investimento; c) sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito; d) organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a lei 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou IV – realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
13 ANDRADE, Vander Ferrreira de. O caráter obrigatório da convenção de condomínio. Migalhas, publicado em 26 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
14 Decreto 22.626/33.
15 SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados: da parte geral do Código Civil brasileiro. Vitória: EDUFES; Rio de Janeiro: MC&G, 2021. p. 21. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
16 Código civil – art. 389, parágrafo primeiro.
17 ANDRADE, Vander Ferrreira de. O caráter obrigatório da convenção de condomínio. Migalhas, publicado em 26 jan. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
18 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Calculadora do cidadão. Correção de valores. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
19 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Juros remuneratórios, juros moratórios e correção monetária após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): dívidas civis em geral, de condomínio, de factoring, de antecipação de recebíveis de cartão de crédito e outras. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 17 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
20 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. Os juros moratórios convencionais após a lei dos juros legais (lei 14.905/24): o caso do art. 5º da lei de usura e a situação do crédito rural, comercial e industrial. Migalhas, coluna Migalhas Notariais e Registrais, publicada em 7 ago. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
21 ROCHA, Ana Maria Muniz dos Santos; NERY, Camila Brito; RIBEIRO, Bruno Marques. Cláusulas gerais: contexto histórico e seus reflexos no ordenamento jurídico. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 21, 1. p. 37-58, jan./mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
22 SILVESTRE, Gilberto Fachetti. Cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados: da parte geral do Código Civil brasileiro. Vitória: EDUFES; Rio de Janeiro: MC&G, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
23 VIÉGAS, Francisco de Assis. Lei 14.905: limites à autonomia privada na pactuação dos juros de mora. Publicado em 5 set. 2024. Acesso em: 11 fev. 2025.
24 ZAIM, Miguel. Legalidade dos juros moratórios estipulados na convenção condominial. Anacon – Associação Nacional da Advocacia Condominial, publicado em 5 mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 fev. 2025.
Autor: Fabio Martins Affonso
Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/424925/novas-regras-para-correcao-monetaria-e-juros-nos-debitos-condominiais