Grassa muita controvérsia, notadamente, na jurisprudência quanto à possibilidade ou não de compensação de precatório de natureza alimentar com os tributos da entidade política devedora. O propósito deste artigo é o de promover a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais resultantes das Emendas ns. 30/2000 e 62/2009, a fim de chegarmos a uma conclusão que se harmonize com a vontade da Constituição Federal.
A EC nº 30. de 13-12-2000, que instituiu o pagamento parcelado em dez prestações anuais de precatórios de natureza não alimentar, por meio do acréscimo do art. 78 ao ADCT prescreveu no § 2º desse artigo o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, na hipótese de inadimplemento das parcelas anuais, nos seguintes termos:
“§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora”.
Por sua vez, o § 4º desse mesmo artigo conferiu ao Presidente do Tribunal competente a faculdade de promover o sequestro de recursos financeiros da entidade devedora que descumprir o prazo de pagamento das prestações anuais, ou deixar de promover a inclusão orçamentária de verba necessária ao pagamento.
Quanto à auto-aplicabilidade da compensação, na verdade, dação em pagamento, resta claro, sem prejuízo do sequestro. Não faz sentido a invocação do caput, do art. 170, do CTN para reclamar a presença de lei autorizativa se o texto constitucional prescreveu que as prestações não pagas “terão poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora”.
O aspecto mais polêmico desse § 2º diz respeito à sua aplicabilidade ou não em relação a precatórios de natureza alimentícia. Há uma tendência jurisprudencial de interpretar literalmente esse § 2º, de sorte a excluir os precatórios não parcelados do benefício dessa compensação especial prevista na norma constitucional. Tanto a doutrina, como a jurisprudência é pacífica no sentido do privilégio absoluto do precatório de natureza alimentar, tanto é que a sua preterição, o que se constata mediante confronto com a fila de precatórios não alimentar, enseja seqüestro (RMS nº 21.477, Rel. Min. José Delgado, j. em 17-10-2006; RMS nº 24,510, Rel. Min. Denise Arruda, Relator para acórdão, Min. Teori Albino Zavascki, Dje de 26-6-2009; ADI-MC nº 571, Min. Néri da Silveira, DJ de 26-2-1993 e ADI nº 42, Rel. Min. Octávio Gallotti, DJ de 13-6-1997).
Ora, se o precatório alimentar goza de privilégio absoluto não se pode entender que fique fora do mecanismo assecuratório do pagamento na hipótese de inadimplência do poder público devedor. Os precatórios não alimentares, isto é, aqueles que não gozam de privilégios, quando descumpridos os prazos de pagamentos das parcelas anuais podem compensar com os tributos da entidade política devedora, ao passo que os precatórios de natureza alimentar não têm essa mesma faculdade.
Essa interpretação literal do texto do § 2º, do art. 78, do ADCT é inconciliável com o princípio geral de direito, segundo o qual a todo direito deve corresponder uma ação que o assegure. Não faz sentido proclamar preferência absoluta na percepção do crédito alimentício se na hipótese de sua inadimplência não é dado compensar com o tributo da entidade devedora, como permitido em relação aos credores não privilegiados.
Por tais razões, em decisão monocrática o Min. Eros Grau reconheceu o direito à compensação do precatório alimentício (RE nº 550.400-RS, DJ de 18-9-2007), mas por força do Agravo Regimental a questão ficou submetida à deliberação do Plenário da Corte Suprema, conforme decisão publicada no DJ de 10-10-2008.
Tanto a questão da auto-aplicabilidade do § 2º, do art. 78, do ADCT, como a questão do poder tributário do precatório alimentar (compensação) são objetos de apreciação pelo Plenário do STF nos autos do RE nº 500.400-RS, Rel. Min. Eros Grau e do RE nº 566.349, Rel. Min. Cârmen Lucia, onde se reconheceu a existência de repercussão geral dos temas debatidos.
Com o advento da EC nº 62, de 9-12-2009, essa questão parece ter sido superada. Com efeito, a compensação ficou expressamente prevista no § 9º, do art. 100, da CF. Outrossim, o art. 6º dessa EC nº 62/2009 convalidou as compensações de precatórios, nos seguintes termos:
“Art. 6º – Ficam também convalidadas todas as compensações de precatórios com tributos vencidos até 31 de outubro de 2009 da entidade devedora, efetuadas na forma do disposto no § 2º do art. 78 do ADCT, realizadas antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.
Este dispositivo não é de ser interpretado de forma isolada, mas de forma sistemática tendo em vista a ordem jurídica global e particularmente o disposto no § 9°, do art. 100 da CF incluído pela EC nº 62/2009 que, por sua vez, deve merecer interpretação ampla.
Em primeiro lugar, há que se lembrar que o objetivo do legislador constituinte derivado, ao inserir o apontado art. 6°, foi o de afastar a insegurança jurídica e colocar um ponto final nas intermináveis discussões judiciais a respeito da matéria.
De imediato, a norma em questão estanca a acirrada discussão jurisprudencial acerca da natureza do § 2°, do art. 78 do ADCT: se se trata de preceito auto-aplicável ou se depende de regulamentação por lei de cada ente político à luz do art. 170 do CTN.
De fato, o legislador constituinte não ignorava o fato de que inúmeros precatórios de natureza alimentícia haviam sido objetos de compensação com tributos das entidades políticas devedoras à luz do § 2°, do art. 78 do ADCT. Não ignorava, também, as demandas judiciais sobre essa questão em juízos, tribunais e no STF onde se discute a matéria no RE n° 566.349-MG, no qual foi reconhecida a existência de repercussão geral do tema sub judice.
Afirmar que somente parcela de precatório comum descumprida ganha poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, mediante interpretação literal do § 2°, do art. 78 do ADCT, é afrontar a vontade da Constituição Federal que é a de conferir prioridade absoluta aos precatórios de natureza alimentícia, conforme prescreve o § 1° do art. 100, da CF:
“Os débitos de natureza alimentícia (…) serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2° deste artigo”.
O § 2°, do art. 100, da CF, com redação dada pela EC nº 62/2009, conferiu privilégio qualificado aos credores alimentícios com idade de 60 anos ou mais ou aos acometidos de doenças graves.
Outrossim, a natureza bilateral da compensação, regulada no art. 368 do Código Civil, impõe a compensação de precatório alimentar por iniciativa de seu titular também. Ela vale tanto entre os particulares, como entre estes e o poder público. Atenta contra os princípios da isonomia e da moralidade pública consagrados na Constituição Federal a tese da insubmissão da Fazenda Pública ao instituto da compensação, principalmente, se o próprio texto constitucional prescreveu a prévia compensação da dívida ativa do poder público antes da expedição do precatório judicial. Neste particular, a regra do § 3º, do art. 16, da Lei nº 6.830/80, que veda a compensação em execução fiscal, não foi recepcionada pela EC nº 62/2009.
Por essas razões, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em recente julgado, deu provimento ao apelo do contribuinte devedor de tributo e credor por precatório ao mesmo tempo, a fim de conceder a segurança e determinar a compensação do débito tributário com o crédito consignado em precatório vencido e não pago, conforme ementa abaixo:
“MANDADO DE SEGURANÇA – TRIBUTÁRIO – Pagamento de débito tributário com crédito referente a precatório vencido e não pago pela Fazenda do Estado – Possibilidade de compensação (art. 156, II do CTN) – Auto-aplicabilidade do art. 78, § 2°, do ADCT, Recurso provido”. (Apelação n° 990.10.010405-5-SP, Rel. Des. Magalhães Coelho, j. em 16-3-2010).
Tratava-se de compensação com crédito relativo a precatório judicial de natureza alimentar vencido e não pago. O V. Acórdão sublinhou que a regra da compensação “vale tanto entre particulares como entre estes e o Estado que, submetido ao império da lei (art. 1°, da CF) e norteado por princípios como da isonomia e moralidade, não possui a prerrogativa de cobrar o que lhe é devido sem pagar o que deve”.
Não temos dúvidas, pois, que o art. 6° da EC nº 62/2009 convalidou as compensações operadas anteriormente à data de sua promulgação, não distinguindo os precatórios comuns dos precatórios alimentares, com o fito de encerrar definitivamente as discussões como as travadas nos RREE ns. 55.400-RS e 566.349-MG.
Nesse sentido, o julgado do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que deu provimento ao apelo do precatorista para reconhecer-lhe o direito à compensação de precatório alimentar à luz da EC n° 62/2009, conforme se verifica da ementa abaixo:
“COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA – Utilização de crédito tributário relativo a precatório vencido e não pago para compensação de débito tributário – Possibilidade de compensação – Inteligência do art. 156, inciso II, do Código Tributário Nacional – Autoaplicabilidade do art. 78, § 2° do ADCT – Superveniência da Emenda Constitucional 62, que entrou em vigor em 10 de dezembro de 2009 – Sentença reformada – Recurso provido.” (Apelação nº 994.09.369820-2, Rel. Des. Antonio Carlos Malheiros, j. em 6-4-2010).
Vale a pena transcrever trechos do lúcido voto proferido pelo Des. Relator:
“Trata-se de apelação (fls. 282/295), em face de sentença (fls. 271/275), cujo relatório se adota, proferida em mandado de segurança preventivo, contra ato do Chefe do Posto Fiscal de Andradina que impediu que o impetrante pudesse efetuar o pagamento de tributo relativo ao mês de janeiro de 2008, com crédito relativo a precatório judicial de natureza alimentar vencido e não pago, conforme dispõe o parágrafo 2º, art. 78, do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais, uma vez que o crédito do impetrante é suficiente para o pagamento de seu débito, junto à Fazenda do Estado.
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O art. 156, inciso II do Código Tributário Nacional prevê que o crédito tributário extingue-se por meio do instituto da compensação.
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Portanto, sendo a norma constitucional dotada de auto-aplicabilidade, é possível ao credor da parcela de precatório descumprida, ou seja, vencida e não paga, compensar com o tributo devido à entidade política devedora, independentemente de autorização legal.
O reconhecimento do direito à compensação, além de estar consubstanciado em dispositivos constitucionais – torna-se ainda mais premente face à caótica situação de inadimplemento dos precatórios. Em contraposição aos princípios constitucionais, a Fazenda do Estado tem deixado de cumprir as condenações judiciais que determinam o pagamento de quantias pelo Poder Público.
Referido inadimplemento é inconcebível em um Estado Democrático de Direito, devendo ser coibido por meio de interpretação que atribua efetividade aos dispositivos constitucionais.
Assim, como decorrência lógica do Estado de Direito e de princípios constitucionais, seria absurdo pretender que à Fazenda Pública fosse reservado o privilégio de não lhe ser oponível a compensação de créditos, ferindo garantias e direitos constitucionalmente protegidos”.
Ilustrativo, também, o V. Acórdão proferido no julgamento da Apelação nº 994.09.386217-5 do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, aonde o Excelentíssimo Desembargador Relator cita trecho da decisão monocrática proferida pelo Ministro Eros Grau no julgamento do RE nº 550400/RS, em que é reconhecido o direito a compensação de crédito tributário com débito de precatório, sem qualquer distinção entre precatório alimentar e não alimentar. Seguem abaixo trechos do referido Acórdão:
“Ementa.
Mandado de segurança. ICMS. Crédito Tributário. Compensação de precatórios oriundos de cessão para quitação de débito do “ICMS”. Recurso provido.
Trata-se de recurso de apelação em mandado de segurança impetrado por Supermercado Shibata Ltda. contra ato do Sr. Chefe do Posto Fiscal de Mogi das Cruzes – PF10, com a finalidade de lhe assegurar o direito de fazer uso de precatório alimentar oriundo de ação ordinária (…), vencido e não pago, para quitação de seu débito de ICMS, nos termos do artigo 78 do ADCT.
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É o relatório.
A r. sentença merece reparo.
A possibilidade de compensação veio a ser reconhecida na Emenda Constitucional nº 30/00, ao atribuir poder liberatório do pagamento de tributos à falta de pagamento dos precatórios, na redação do art. 78, § 2º, do ADCT.
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O Colendo Supremo Tribunal Federal chamado a resolver a questão da possibilidade de pagar Tributos com Precatório emitido por outro ente público – decidiu favoravelmente nesse sentido:
“RE 550400/RS – RIO GRANDE DO SUL RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a) Min. EROS GRAU Julgamento: 28/08/2007
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DECISÃO: Discute-se no presente recurso extraordinário o reconhecimento do direito à utilização de precatório, cedido por terceiro e oriundo de autarquia previdenciária do Estado-membro, para pagamento de tributos estaduais à Fazenda Pública.
2. O acórdão recorrido entendeu não ser possível a compensação por não se confundirem o credor do débito fiscal — Estado do Rio Grande do Sul — e o devedor do crédito oponível — a autarquia previdenciária.
3. O fato de o devedor ser diverso do credor não é relevante, vez que ambos integram a Fazenda Pública do mesmo ente federado [Lei n. 6.830/80]. Além disso, a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo resulta da própria lei [artigo 78, caput e § 2º, do ADCT à CB/88].
4. Esta Corte fixou jurisprudência na ADI n. 2851, Pleno, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 3.12.04, no sentido de que:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO COM DÉBITO DO ESTADO DECORRENTE DE PRECATÓRIO. C.F., art. 100, art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2002.
I. – Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia. – Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia, que autoriza a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas a que se refere o art. 78, ADCT/CF, introduzido pela EC 30, de 2000.
II. – ADI julgada improcedente.”
Dou provimento ao recurso extraordinário, com fundamento no disposto no art. 557, § 1º-A, do CPC. Custas ex lege. Sem honorários Publique-se.
Brasília, 28 de agosto de 2007.
Ministro Eros Grau – Relator”
A decisão proferida pelo Min. Eros Grau não fez qualquer distinção da natureza do precatório devido, para conferir o poder liberatório para pagamentos de tributos.
Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso, concedendo a segurança parta reconhecer o direito do impetrante efetuar o pagamento seu débito tributário com o precatório judicial.” (Rel. Des. Marrey Unit, J. em 23-03-2010).
Indubitável que as compensações de precatórios de natureza alimentar realizadas com tributos da entidade política devedora estão convalidadas, principalmente ao teor do § 9º, do art. 100, da CF que constitucionalizou a figura da compensação. Atenta contra o princípio do Estado Democrático de Direito o entendimento que permite ao Estado compensar seu débito com o crédito tributário e negar esse direito à compensação na hipótese inversa, isto é, quando o mesmo Estado é devedor do contribuinte por precatório de sua responsabilidade.
Para os precatórios sujeitos ao regime de pagamento especial na forma do art. 97 e parágrafos do ADCT a compensação automática com débitos líquidos e certos do precatorista junto a Fazenda Pública devedora, aparentemente, ficou a critério do Presidente do Tribunal de origem ao teor do § 10, I e II, do art. 97. Este ficou com a faculdade de optar entre o sequestro da quantia não depositada pelo ente político e a compensação automática, conferindo ao precatório poder liberatório do pagamento de tributos de Estados, Distrito Federal e Municípios.
Contudo, nada impede ao precatorista credor e devedor da Fazenda ao mesmo tempo requerer essa compensação ao Presidente o Tribunal, se quiser. Entretanto, o seqüestro da quantia em dinheiro para satisfação do crédito por precatório surte o mesmo efeito que a compensação.
De qualquer forma, tanto o seqüestro, como a compensação, no caso dos precatórios atingidos pela nova moratória instituída pela EC n° 62/2009, estão condicionados a não liberação tempestiva dos recursos de que trata o inciso II do § 1º e os § § 2º e 6º do art. 97 do ADCT (§ 10, I e II)
Essa regra específica inserida no ADCT, entretanto, não prejudica a interpretação ampla que demos ao § 9°, do art. 100, da CF, notadamente, para delimitar o alcance e conteúdo da norma do art. 6°, da EC n° 62/2009 que tem por objetivo passar uma esponja no passado.
O que não é possível juridicamente é conferir interpretação literal ao disposto no § 2º, do art. 78, do ADCT e ao art. 9º, do art. 100, da CF de sorte a esvaziar o conteúdo do disposto no § 1º, do art. 100, da CF que confere prioridade ao precatório de natureza alimentícia. É princípio elementar da hermenêutica a interpretação da norma de sorte a conferir-lhe efeito jurídico.
Autor: Kiyoshi Harada, Jurista. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Professor. Especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP
Fonte: www.jus.uol.com.br