A Lei 14.905/2024 definiu que, quando a taxa de juros moratórios (aplicados por atrasos em pagamentos) não estiver prevista no contrato, a correção de dívidas civis deve ser feita pela aplicação da Selic menos o IPCA (ou outro índice previsto em eventual lei específica). Mas a norma só vale a partir de agosto deste ano. Diante do julgamento de março, em que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu apenas a Selic como taxa de correção, a possibilidade de rediscussão de casos anteriores a isso gera dúvidas e contestações.
A banca argumenta que a coisa julgada deve ser respeitada. Por outro lado, há quem entenda que a modulação seria injusta e que a revisão dos valores desses casos deve acontecer. Outra corrente considera que a modulação sequer é possível, devido à falta de mudança na jurisprudência do STJ.
Modulação
Em embargos de declaração, a autora e o escritório alegam que a Corte Especial não tratou dos efeitos de sua decisão quanto às ações nas quais já foi definida a forma de atualização monetária do débito ou já houve levantamento dos valores. “A depender da modulação a ser prestada, poderá haver complicado cenário de devolução de montantes legalmente recebidos por força de título executivo judicial, violando-se a coisa julgada”, diz a petição.
Dentre outras coisas, eles pedem que o colegiado preserve o que já foi decidido de forma definitiva nesses casos antes da nova lei e todos os pagamentos já efetuados (ainda que sem trânsito em julgado), mesmo que isso contrarie a decisão de março.“ Do contrário, haverá verdadeiro caos no Poder Judiciário, com o reexame de matéria já decidida (e protegida pela coisa julgada) em milhões de processos no país inteiro, violando-se uma série de normas e princípios constitucionais”, assinalam.
De acordo com o advogado Thiago de Mello Almada Rubbo, que atua com contencioso cível no GHBP Advogados, sem a modulação, ações rescisórias podem levar à devolução, anos depois, de parte dos valores já levantados, já que a aplicação da Selic garantiria um montante menor.
A ideia é que os devedores podem ser, em tese, beneficiados com o cálculo por meio da Selic. Isso pode estimular um aumento de ações com o objetivo de aplicar tal taxa, indica Rubbo.
Um dos principais argumentos dos embargos é que tribunais de todo o país não corrigiam dívidas civis pela Selic. A alternativa mais comum era impor juros de 1% ao mês, mais correção monetária por algum índice à escolha da corte (entre IPCA, IGP-M, INPC e outros).
O escritório apresentou à Corte Especial diversos precedentes recentes de, pelo menos, nove tribunais estaduais que aplicaram essa lógica. No julgamento de março, o ministro Luis Felipe Salomão, que foi divergência vencida, apontou precedentes do próprio STJ neste sentido.
“Demonstrou-se que parte considerável dos magistrados de todo o país — a maioria, certamente — costumava aplicar índice diverso àquele definido por força do julgamento deste REsp, de modo que é certo que há uma enormidade de casos concretos em que a taxa Selic não foi adotada”, diz outro trecho da petição dos embargos.
“A coisa julgada tem que ser preservada. Se não, vai haver uma avalanche de processos”, diz o advogado Leonardo Amarante, que assina a petição. Segundo ele, se a modulação não for feita, “todo mundo vai fazer uma ação rescisória”, nos casos em que ainda não tenha se encerrado o prazo legal de dois anos a partir do trânsito em julgado.
Amarante explica que o pedido de modulação busca solucionar situações consolidadas, mas que ainda estão dentro do prazo de ação rescisória; execuções em cumprimento de sentença em andamento, com determinação de aplicação de juros de 1% mais correção monetária; e casos em que a sentença com trânsito em julgado não foi clara em relação ao índice aplicável e deixou dúvidas. Ainda segundo ele, muitas partes e advogados estão aguardando uma definição quanto a essa possível modulação para prosseguirem com acordos nesses casos.
Rubbo acrescenta que muitas questões ainda não foram respondidas, mesmo com a nova lei, “especialmente sobre a aplicação da taxa em casos em que os juros de mora têm incidência em data anterior ao termo inicial da correção monetária”.
Movimento natural
O advogado civilista Sérgio Niemeyer concorda que a decisão da Corte Especial vai causar “um certo afluxo” de ações rescisórias. Mas ele acredita que isso deve acontecer para trazer estabilidade. Niemeyer considera que as partes têm mesmo de pedir as “revisões necessárias” dos juros cobrados e pagos. “Quem pode fazer ação rescisória faz. Quem pode fazer ação anulatória faz. Quem estiver em fase de execução já pede a revisão”, aponta.
Ele ressalta que, segundo precedentes de turmas do STJ (AREsp 1.598.962 e REsp 2.004.691, por exemplo), juros moratórios não estão sujeitos “nem à preclusão nem à coisa julgada”. Ou seja, eles podem ser revistos pelo magistrado de ofício, até mesmo na fase de execução.
O advogado não vê motivos para a modulação. Ele lembra que o caso julgado pela Corte Especial é de 2014. Assim, a modulação esbarraria “em uma dificuldade de ordem racional”: a Selic se aplicaria a este processo, mas não a outras ações propostas na mesma época, ou mesmo depois, e já julgadas.
“Pessoas na mesma situação de fato e de direito não poderiam ter a revisão das suas contas”, pontuou. Ou seja, as partes desses processos não poderiam revisar os valores estipulados, somente porque seu julgamento foi mais rápido.
Na visão de Niemeyer, isso é injusto, até porque a demora na ação de 2014 pode ter ocorrido justamente devido à discussão na Corte Especial.
Obstáculos
Conforme o Código de Processo Civil, a modulação dos efeitos de uma decisão pode ocorrer somente em julgamentos de casos repetitivos ou na hipótese de alteração da jurisprudência dominante dos tribunais superiores.
A advogada Maricí Giannico, sócia do Mattos Filho que atua com contencioso cível, lembra que o julgamento de março da Corte Especial não é repetitivo. Por isso, “não tem eficácia vinculante”. De acordo com Giannico, os embargos partem do pressuposto de que o colegiado precisa dar uma orientação temporal ao tema — o que, para ela, não é necessário em um julgamento não repetitivo.
Niemeyer acredita que o assunto será julgado como repetitivo quando começarem a ser propostas as ações de revisão. Aí, sim, na sua visão, será necessário consolidar a tese.
Amarante defende que “efetivamente ocorreu” em março deste ano uma “alteração do entendimento jurisprudencial dominante” do STJ, o que autorizaria a modulação. Ele ainda ressalta que o caso “influenciará milhões de causas cíveis”, pois, uma vez submetido ao exame da Corte Especial, vincula as turmas do STJ e todos os tribunais brasileiros.
Mas há quem não veja o julgamento de março como uma inovação no tema da atualização das dívidas civis. Segundo essa corrente, a decisão é apenas uma reafirmação do posicionamento histórico do STJ. Isso porque a Corte Especial passou a adotar a Selic em 2008 (EREsp 727.842). Essa decisão foi seguida em diversos outros julgamentos posteriores.
Rubbo destaca que, desde 2015, o CPC prevê “a obrigatoriedade de se observar a tese jurídica definida pelo Plenário ou Órgão Especial dos tribunais superiores”. Ou seja, em tese, “a taxa Selic já deveria ter sido observada”.
Maria Cristine Lindoso, advogada associada da área de tribunais superiores do Trench Rossi Watanabe, lembra que, em um julgamento de recurso repetitivo em 2010 (REsp 1.111.117), a Corte Especial já confirmou a Selic como a taxa de correção das dívidas civis.
“Quer dizer que, desde 2010, os litigantes que pedem a aplicação da taxa Selic costumam ter êxito perante o STJ”, discorre. “Assim, não faria muito sentido discutir a modulação de efeitos para evitar demandas novas se a questão já é passível de debate há anos.” Giannico concorda e ressalta que esse precedente é vinculante.
“Há algum tempo, o STJ vem decidindo que a taxa referencial Selic é a taxa que deve ser aplicada nos débitos fiscais”, complementa Niemeyer. “E não faz sentido que não seja também nas obrigações civis. Então, o tribunal não mudou drasticamente nenhuma jurisprudência.”
Segundo ele, os “advogados atentos” já deveriam saber dessa orientação do STJ. “Quem não discutiu isso não fez por conveniência. Agora, vai poder fazer a revisão, ou vai sofrer a consequência de não ter feito”.
Por outro lado, Giannico não vê possibilidade de rediscussão de valores já corrigidos. Diferentemente do advogado, ela cita precedentes de turmas do STJ contrários à modificação da taxa de juros moratórios na fase de execução — como o AREsp 2.173.347, no qual a 4ª Turma considerou que isso viola a coisa julgada.
Por: José Higídio
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-dez-09/aplicacao-da-selic-a-dividas-civis-anteriores-a-nova-lei-e-contestada/