Gilberto Melo

Ciranda dos juros capitalizados coloca mutuários em dificuldade

Os mutuários do Sistema Financeiro da Habitação, que estão lutando na Justiça para desfazer a capitalização de juros incidentes nos empréstimos, precisam saber que ainda vão travar uma longa batalha. Embora muitos ministros dos tribunais superiores entendam que a capitalização está vedada legalmente, outros defendem a posição de que os juros dessa forma podem ser cobrados, desde que previstos em contrato. Isso significa que ainda não existe jurisprudência e muitos mutuários, que ganharam a causa em primeira instância, podem vir a ter a surpresa desagradável de ver uma reviravolta no decorrer do processo.

O Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec) orienta os mutuários a submeter o contrato à análise de advogados especializados para que possa ser detectada a cobrança abusiva de juros. Para o Ibedec, a jurisprudência está pacificada e é uma questão de tempo até que o mutuário ganhe a causa em última instância. O presidente da entidade que defende os consumidores, Geraldo Tardin, cita a decisão do ministro Teori Albino Zavascki, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em ação movida contra a Caixa Econômica Federal, como uma garantia de que a cobrança abusiva vai ser revista.

Em seu parecer, o ministro diz que a “capitalização de juros, vedada legalmente, deve ser afastada nas hipóteses de contrato de mútuo regido pelas normas do Sistema Financeiro da Habitação por constituir convenção abusiva”. De acordo com Tardin, o abuso pode não ser facilmente detectado pelo mutuário. “Nos contratos de financiamento, além da taxa de juros anual nominal, o banco também indica a taxa de juros efetiva, que é maior. Essa taxa efetiva esconde a capitalização de juros, o que faz com que o saldo devedor aumente em até 20% ao fim do prazo contratual”, explicou.

Segundo Tardin, uma vez constatada a cobrança de juros ilegais, é possível ao mutuário propor ação de revisão do contrato contra o banco, depositando em juízo a parcela que julgar correta. Foi isso o que aconteceu com o funcionário aposentado do Banco Central, Alcione Vasconcelos. Ele comprou um apartamento para a filha em 1990, financiando R$ 30 mil na época pela Caixa Econômica Federal, pelo plano de equivalência salarial, onde as prestações subiam de acordo com o salário, mas o saldo devedor era corrigido pelos juros previstos no contrato, mais atualização monetária.

Apesar de pagar rigorosamente em dia as prestações, Vasconcelos só viu o saldo devedor crescer. Hoje, a dívida está em R$ 410 mil, valor muito superior ao de venda do apartamento de 90 metros quadrados na Quadra 403 Sul do Plano Piloto, que o funcionário aposentado do BC calcula em R$ 250 mil. Apavorado, Vasconcelos procurou ajuda e foi instruído a entrar na Justiça. “Dei entrada em 2003 e, desde então, venho depositando judicialmente R$ 50 todo mês”, contou. Segundo Vasconcelos, quando ele parou de pagar diretamente à Caixa, a prestação estava em mais de R$ 300.

A preocupação do funcionário do BC é que o processo não andou. “Não tenho ainda nenhuma decisão do juiz. O processo continua parado na 16ª Vara. Não foi julgado”. Segundo ele, a última decisão na primeira instância é para que seja feita uma perícia contábil no contrato, para levantar tudo o que ele já pagou e ver o que está faltando para a quitação da dívida.

Questionada pelo Correio, a Caixa informou, por meio da assessoria de imprensa, que nas operações do Sistema Financeiro da Habitação, independentemente do sistema de amortização utilizado, não há “cobrança de juros sobre juros”, vedada pelo Decreto 22.626/33. A Caixa explicou que a cobrança alegada não acontece porque a quitação dos juros é feita no seu respectivo vencimento, sendo parte integrante da prestação mensal. “Como os juros são pagos, eles não compõem a base de cálculo dos juros dos períodos subsequentes, inexistindo a capitalização de juros”, declarou a instituição.

Consumidores estão nas mãos dos juízes

Mas não é apenas nos financiamentos imobiliários que há incidência de capitalização de juros. Basicamente, em todos os contratos isso pode ocorrer. E essa aplicação acaba multiplicando assustadoramente o valor da dívida. A advogada da Associação Nacional de Defesa dos Consumidores de Crédito (Andec), Lilian Salgado, questionou na Justiça a capitalização de juros no contrato de financiamento de seu cliente, hoje com saldo devedor de R$ 242,65 mil.

Se o método for substituído pela aplicação de juros simples, a dívida cai para R$ 75,96 mil. “No meu entendimento, a capitalização mensal de juros é vedada nos contratos de financiamento, empréstimos e outros, contudo, esta questão virou uma polêmica no nosso poder judiciário”, ressaltou . “É uma briga danada. Existe uma súmula do Supremo Tribunal Federal (STF) que proíbe a cobrança, mas tem uma medida provisória (MP) que permite. Tem uma ação direta de inconstitucionalidade no STF questionando a MP e alguns ministros do STJ entendem que a cobrança é legal, desde que esteja explícito no contrato”, relatou (para entender o caso leia o quadro).

O vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional, Vladimir Lourenço, concorda com Lilian. Segundo ele, o cliente bancário está nas mãos de juízes. Lourenço explicou que alguns juízes acreditam que o que está definido no contrato é o que deve ser cumprido. Outros, já consideram que nos empréstimos e financiamentos não devem ocorrer a capitalização de juros. Ele recomenda que os clientes bancários solicitem, a cada dois anos, às instituições financeiras uma espécie de histórico da operações. Com ele, é possível saber se está ocorrendo a cobrança de juros sobre juros.

O presidente do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor do Sistema Financeiro (Andif), Donizét Piton, destacou que os atuais contratos bancários estão na contramão dos direitos do consumidor. “Alguns juízes mais velhos, experientes e que não estão cansados, ainda dão ganho de causa para o consumidor”, frisou Piton.

Anatocismo

Também há especialistas que não consideram cobrança de juros sobre juros e capitalização de juros como equivalentes. O economista Luiz Fernando Barreto Perez, por exemplo, só considera anatocismo ou cobrança de juros sobre juros quando, após o vencimento de uma operação, o credor cobra juros sobre os juros vencidos e não pagos. “Na minha opinião, os únicos casos que se encaixam nessa situação são os contratos do sistema de financiamento habitacional das décadas de 70, 80, em que as prestações eram corrigidas pela variação salarial e o saldo devedor pelos índices de inflação”, avaliou. “Como o índice salarial sempre foi menor, chega ao ponto em que as prestações não conseguiam pagar os juros devedores do mês. A diferença ia para o saldo devedor, e eram aplicados juros sobre os juros já cobrados”, explicou.

Fonte: Correio Brasiliense