O Ministério Público é parte legítima para defender os mutuários do Sistema Financeiro de Habitação, e os contratos de aquisição dos imóveis estão sujeitos às disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor. A decisão, unânime, baseou-se em voto da ministra Nancy Andrighi, presidente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, e beneficia mais de mil famílias de mutuários de baixa renda do Ceará, adquirentes de imóveis populares nos conjuntos residenciais Jurupari I e II, em Fortaleza, financiados pela CEF com recursos oriundos do SFH.
Em 2001, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública, em defesa dos mutuários, para que a Caixa se abstivesse de retomar os imóveis populares, pelo menos até que fosse realizada uma perícia para apurar o valor real das unidades residenciais, tendo em vista a alegação dos mutuários de que estaria havendo superfaturamento na avaliação da CEF. O MPF alegou, juntando fotos das casas, que o material utilizado na construção das unidades residenciais foi de péssima qualidade, muito abaixo do padrão ajustado nos contratos, mas, mesmo assim, a autarquia financiadora majorou em excesso o valor final dos imóveis, desencadeando uma onda de inadimplementos.
O MPF denunciou que parcela significativa dos moradores dos conjuntos, em face da estrutura precária das casas e do aumento constante das prestações, sempre muito acima de sua capacidade econômica, abandonou seus imóveis, e os que permaneceram em suas residências estão sendo pressionados para renegociarem suas dívidas e ameaçados de terem seu imóvel retomado pela Caixa.
O juiz federal da 5ª Vara do Ceará deferiu a liminar pedida, para garantir que os moradores continuassem em suas residências até a realização da perícia para apuração do real valor de mercado, mas a CEF levou a questão ao TRF, argumentando que o Ministério Público não teria qualquer legitimidade para, utilizando o instituto da ação civil pública, aviltar o patrimônio publico, impedindo a disponibilização de imóveis do SFH e sua venda a quem realmente precisa de casa própria, inviabilizando os fins sociais a que se destina o Sistema. Para a CEF, não é dever do MP defender invasores de imóveis pertencentes ao patrimônio público, prejudicando todo um sistema que vem cumprindo sua função social no financiamento à moradia dos menos necessitados.
A Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Recife (PE), acolheu o agravo da CEF e suspendeu os efeitos da medida concedida. Para o TRF-5, o Ministério Público Federal só teria legitimidade para defesa dos direitos individuais homogêneos naqueles casos em que haja inequívoco interesse social relevante, o que não ocorreria na hipótese. Para o TRF, o que está em jogo, no caso, são cotas individualizadas de expressiva repercussão econômica, suficientes para suscitar o interesse de cada um em defender os seus próprios interesses, sem nenhuma necessidade de amparo por parte do Ministério Público.
Daí o recurso especial do MPF para o STJ, alegando violação a dispositivos do Código de Defesa do Consumidor e a artigos da Lei Complementar nº 75, de 1993. Ao acolher o recurso do Ministério Público Federal, a relatora do processo, ministra Nancy Andrighi, argumentou estar evidente, no caso, a existência de interesse social relevante, capaz de justificar a legitimidade do MP para a propositura da ação. Para a ministra, está clara, no caso, a existência do dano potencial, evidenciado na possibilidade de que os materiais utilizados na construção das unidades residenciais dos conjuntos habitacionais Jurupari I e II sejam de qualidade duvidosa, o que poderá vir a comprometer, em caso de possíveis desmoronamentos, a integridade física e até mesmo a vida dos moradores, a exemplo do que já aconteceu em outros recentes episódios presentes na memória da vida nacional.
Para a relatora, o interesse individual homogêneo é um interesse individual na origem, e que, nesta perspectiva, pode até ser encarado como disponível, mas que alcança toda uma coletividade e, com isso, passa a ostentar relevância social, tornando-se assim indisponível quando tutelado. Por isso, é possível ao STJ passar a considerar os interesses individuais homogêneos como socialmente relevantes por si mesmos, já que supra-individuais e porque invariavelmente, de um modo ou de outro, atingem ou atingirão a coletividade como um todo.
De igual modo, considerou a ministra ser aplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor, por entender que, numa ponta da relação está o Sistema Financeiro da Habitação, fornecedor que presta serviço de natureza financeira e de crédito, e, na outra ponta, está o mutuário, consumidor que além de adquirente e destinatário final fático do bem e do serviço, é o destinatário final econômico, que utiliza o bem e o serviço para o atendimento de necessidade privada. Lembrou, ainda, que o CDC foi feito com o objetivo de harmonizar as relações de consumo, por isso impõe o fornecimento de produtos e serviços segundo os melhores padrões de qualidade, confiabilidade e segurança, além de exigir a transparência nas relações de consumo, com destaque para a exigência de informações claras e corretas sobre o produto a ser vendido e sobre o contrato a ser firmado.
Por tudo isso, acolheu o recurso para reconhecer a legitimidade do Ministério Público Federal para propor ação civil pública em defesa dos interesses e direitos individuais homogêneos dos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação, definindo que os contratos a esse título celebrado estão sujeitos às regras legais que amparam os direitos do consumidor. Seu voto foi acompanhado integralmente pelos ministros Castro Filho e Carlos Alberto Menezes Direito. Não participaram do julgamento os ministros Antônio de Pádua Ribeiro e Humberto Gomes de Barros.
Processo: REsp 635807
Fonte: www.stj.gov.br