Gilberto Melo

Divergências sobre a taxa de juros permanecem em julgados do TJ/SP

Em artigo anterior de setembro de 2024 (Alterações no CC com a vigência da nova lei 14.905/24: A taxa de juros Selic se aplica em todos processos em curso?) concluímos que nada impede, em tese, a coexistência de taxas de juros moratórios distintas no mesmo processo; tudo depende da taxa de cada mês, de quando “nascem” os juros.

Apesar do correto entendimento da coexistência em julgados recentes no TJ/SP, há divergências acerca de qual é a taxa correta dos juros “nascidos” antes da alteração legal (antes de setembro de 2024): se SELIC ou 1%.

De início, deve-se notar que, até o momento, não foram alterados os Temas 99 e 112 do STJ, de 2009, em regime de repetitivos, pelos quais aplica-se a SELIC. No final de 2024, a tese foi reafirmada na publicação do acórdão do REsp 1.795.982/SP.

Curiosamente, apesar disso, a taxa de 1% para os juros “nascidos” antes da lei 14.905/24 sobrevive nos tribunais estaduais. Um exemplo é o TJ/SP. Há acórdãos recentes nesse sentido, como no trecho da ementa abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de título extrajudicial – Cédula de crédito bancário – Exceção de pré-executividade rejeitada – Insurgência da executada – Índices de atualização monetária e juros moratórios – Aplicação da tabela prática deste TJ/SP e juros de 1% ao mês – Alegação de ofensa ao Resp nº 1.795.982/sp. Inocorrência – Coisa julgada em embargos à execução – Segurança jurídica – lei 14.905/24. Ausência de retroatividade – Princípio do pacta sunt servanda. Recurso desprovido. 1. A correção monetária e os juros de mora incidentes sobre a cédula de crédito bancário, objeto da execução, foram definidos em embargos à execução, transitado em julgado em 14.03.2022, com base na legislação e jurisprudência vigentes à época, utilizando-se a Tabela Prática deste TJ/SP e juros de 1% ao mês. 2. O julgamento do REsp 1.795.982/SP, que fixou a taxa SELIC como índice de correção monetária, não possui efeitos retroativos a atingir situações jurídicas consolidadas, notadamente em casos em que operada a coisa julgada. 3. A lei 14.905/24, que alterou o art. 406 do CC, não retroage para atingir casos com coisa julgada formada anteriormente à sua vigência, conforme expresso em seu art. 5º. 4. A aplicação da tabela prática deste TJ/SP e dos juros de 1% ao mês, conforme definido na sentença transitada em julgado nos embargos à execução, respeita o princípio do pacta sunt servanda e a segurança jurídica, preservando a estabilidade das relações contratuais. RECURSO DESPROVIDO. 
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2286084-49.2024.8.26.0000; Relator (a): Marco Pelegrini; Órgão Julgador: 12ª câmara de Direito Privado; Foro de Santos – 2ª vara Cível; Data do Julgamento: 9/1/2025; Data de Registro: 9/1/2025)

Em rápida pesquisa no site do próprio TJ/SP, foram localizados diversos outros julgados nesse sentido: 1028854-12.2022.8.26.0100, Rel. Elói Estevão Troly; j. 10/2/2025, 15ª Câmara; 1001282-47.2024.8.26.0218; Rel. Luís H. B. Franzé; 17ª Câmara; j. 19/12/2024; 0141189-74.2011.8.26.0100; Rel. Lavinio Donizetti Paschoalão; 38ª Câmara; j. 19/02/2025; 1003944-02.2022.8.26.0655; Rel. Carmen Lucia da Silva; 33ª Câmara; j. 19/2/2025; 1001163-30.2023.8.26.0248; Rel. Rômolo Russo; 34ª Câmara; j.  28/1/2025; 1004640-40.2024.8.26.0664; Rel. Flavio Abramovici; 35ª Câmara; j. 13/2/2025.

Nesse contexto, e tendo em conta a jurisprudência do STJ, o objetivo específico proposto é refletir sobre a principal razão da divergência na aplicação dos juros moratórios.

Os julgados sugerem que o receio é a retroatividade. Assim, defende-se a taxa de 1% levando em conta que a lei 14.905/24 (SELIC) não retroage.

Todavia, aplicar a SELIC não significa necessariamente concluir que a taxa de juros retroage, o que realmente seria errado. Trata-se, na verdade, de seguir a posição consolidada do STJ, que, como mencionado, não mudou.

Vale notar que o REsp 1.795.982/SP não transitou em julgado. Há recurso extraordinário pendente de apreciação, no qual, dentre outros argumentos, defende-se a incidência da taxa de 1% ao mês, levando em conta a irretroatividade da lei 14.905/24, sob pena de violação constitucional ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.

Ainda que houvesse mudança no entendimento do STJ (overulling), como regra, salvo modulação de efeitos, só teria eficácia ex nunc, para atingir os julgamentos futuros, e não os já sentenciados (NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade; Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 1843).

De todo o modo, é verdade que, até recentemente, existia uma pequena diferença de entendimento entre a definição em regime de repetitivos do STJ e a lei 14.905/24: o abatimento do IPCA.

Até a lei, era frequente seguir os temas do STJ aplicando correção monetária e os juros de mora englobados na SELIC. Contudo, para evitar bis in idem, os parâmetros da lei estabelecem a dedução do IPCA da Selic, nos termos do art. 389, parágrafo único, do CC.

Os desembargadores Domingos de Siqueira Frascino e Rosana Santiso expõem o mesmo entendimento em diversos julgados. Confira-se, a título de exemplo: (Embargos de Declaração Cível 1029789-21.2023.8.26.0002; Relator Domingos de Siqueira Frascino; Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau Turma IV (Direito Privado 2); j. 30/10/2024).

Além desse, veja-se trecho da apelação 1001298-72.2024.8.26.0356 do TJ/SP, destacando a fundamentação do desembargador Cláudio Godoy, que sintetiza o entendimento:

Com efeito, deve mesmo ser afastada a aplicação da lei 14.905/24 no período anterior ao de sua vigência, como se procedeu na sentença. Mas não para se aplicarem os índices no decisum discriminados [1%]. Na verdade, os juros de mora da indenização arbitrada devem incidir na forma do julgamento, pela Corte Especial do C. STJ, do REsp 1.795.982/SP, então assentado o entendimento de que, para o período anterior à lei 14.905/24, mas bem em seus termos, devida incidência de juros pela Taxa SELIC, embora sem atualização. E, já depois disso, remetendo a este precedente: REsp n. 2.170.289, ministro Raul Araújo, DJe de 02/10/2024; AgInt no AREsp n. 2.070.372/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, 4ª turma, julgado em 9/9/2024, DJe de 12/9/2024. Destaca-se, porém, que no período posterior, incide a lei nova e a redação que deu aos arts. 389, parágrafo único, e 406 do CC, a despeito do que pleiteia o apelante. Não se olvida que os fatos cuja licitude se discutiu, os descontos no benefício previdenciário do autor (fls. 25/27), ocorreram antes da vigência da lei 14.905/24. Porém, a correção e os juros incidem mês a mês e por isso são colhidos, a partir de sua vigência, pela lei nova. É, de resto, o princípio que se contém, até de forma mais extensa, no art. 2.035 do CC/02, que consagra a tese da chamada retroatividade mínima, ou seja, incidência da lei nova a efeitos futuros de atos jurídicos pretéritos” (destacamos e incluímos).

Apesar da exatidão do trecho, a verdade é que a quarta turma do STJ vem afastando a diferença entre a definição em regime de repetitivos do STJ e a lei 14.905/24 há algum tempo. Lá, defende que deve haver abatimento do ICPA na aplicação da SELIC, mesmo para os juros “nascidos” antes da lei.

No acórdão do Agravo Interno no agravo em REsp 2.059.743 (DJe 20/2/2025), o relator, ministro Antônio Carlos Ferreira, reforçou este entendimento ao fixar a taxa SELIC deduzido o IPCA para período anterior à lei 14.905/24, para evitar bis in idem (que seria enriquecimento sem causa do credor).

Neste mesmo julgado, o STJ afastou qualquer confusão em relação à retroatividade de maneira expressa.

Não obstante, a quantidade de julgados que ainda aplicam 1% em casos anteriores à lei causa insegurança jurídica, mesmo que sob a correta premissa de irretroatividade da taxa de juros.

Ao menos sob a perspectiva processual dos temas do STJ (em linha com os arts. 926 e 927 do CPC), em nenhum processo deveria ser fixada a taxa de juros de 1% ao mês, quer se concorde, ou não, com a taxa SELIC, sob pena de, além de recurso especial, caber reclamação para ser garantida a observância de acórdão proferido em incidente de demanda repetitiva (art. 988, §1º, do CPC).

Vale mencionar que já se vê em decisões monocráticas do STJ a reversão de julgados do TJ/SP, fundamentadas na incumbência do relator julgar diretamente recursos que seguem entendimentos firmados em repetitivos (art. 932, V, “b”), para dar provimento à taxa SELIC. É o caso dos julgados: REsp n. 2.170.289, Rel. min. Raul Araújo, j. 26/9/2024; AgInt no AREsp n. 2.070.372/SP, Rel. min. João Otávio de Noronha, 4ª turma, j. 9/9/2024.

Mesmo que, por hipótese, não se concorde com a SELIC, é preferível a clareza das regras nos tribunais, que devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC), postura que deve ser buscada mesmo se eventualmente vingar o projeto 4/25 para reforma do CC/02, com o retorno da taxa fixa de 1% e possível coexistência de taxas diversas (SELIC e 1%).

Autor: Davi Marques de Araújo

Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/432242/divergencias-sobre-a-taxa-de-juros-permanecem-em-julgados-do-tj-sp