Uma situação intrigante é a possiblidade de a liquidação de uma sentença condenatória resultar em quantum debeatur igual a zero. Na prática, o executado nada deverá apesar de ter, contra si, transitada em julgado sentença que julgou procedente pedido indenizatório ou pedido para realizar uma obrigação. A doutrina nomeia esta hipótese de várias formas como liquidação zero, igual a zero, liquidação sem dano, ou até mesmo liquidação sem resultado positivo.
O pedido deve ser determinado (art. 324, CPC), dimensionando seu alcance e extensão. Porém, o § 1º permite que o autor realize pedido genérico (i) nas ações universais, se o autor não puder individuar os bens demandados, (ii) quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato; ou (iii) quando a determinação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu. São hipóteses em que não seria viável exigir que o magistrado prolatasse decisão líquida1.
A regra é a decisão julgadora seja líquida, apontando o an debeatur e o quantum debeatur. É o que se extrai do caput do art. 491 do CPC, que dispõe que na ação de pagar quantia, ainda que formulado pedido genérico, a decisão definirá desde logo a extensão da obrigação. Porém, o próprio dispositivo excepciona esta regra indicando situações em que a decisão poderá ser ilíquida, nas hipóteses de (i) não ser possível determinar, de modo definitivo, o montante devido, ou ainda (ii) quando a apuração do valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa, assim reconhecida na sentença.
A conclusão é que a decisão poderá ser ilíquida nos casos das exceções do art. 491 e nas apreciações de pedidos genéricos do art. 324, § 1º, da lei processual, na circunstância de o magistrado não conseguir apurar, na fase de cognição, a extensão devida.
Contextualizando, há exemplos em que se condena um réu a indenizar o autor, mas excepcionalmente posterga-se a mínima ou exata mensuração do dano para a liquidação, seja em razão de pedido genérico, seja em razão das mais variadas situações em que se torna impossível apurar definitivamente o dano em razão do risco de demora da prestação jurisdicional, por exemplo. Ocorre não apenas em obrigações de valor pecuniário (quantia certa), mas também em outras em que não se estipule na sentença a extensão, medida, quantidade da obrigação a ser prestada pelo devedor2.
Nesses casos, a liquidação será uma fase anterior e indispensável para o início de um futuro cumprimento de sentença, já que inserida em um processo sincrético. Seu resultado declarará o elemento faltante3 do título judicial – o quantum debeatur – tornando-o agora, além de certo, líquido, e, se for o caso, exigível com a implantação do termo, para se viabilizar a tutela executiva.
Obtendo-se o resultado da liquidação, é possível que se conclua que não houve qualquer dano ou que nenhum valor é devido, o que impossibilitará o início de um cumprimento de sentença. O processo judicial, portanto, extingue-se nesta fase aparentemente prematura, já que não há uma obrigação pendente de cumprimento. Sem dúvida, uma situação que causa estranheza. A liquidação apurou resulta zero. O condenado nada deve, na prática.
Ao adjetivar tal circunstância como “elegantíssima”, Candido Rangel Dinamarco4 listou alguns exemplos que podem clarear a compreensão, conforme compilado por Bianca Richter5: (i) sentença condenatória por danos e liquidação não encontra nenhum dano indenizável; (ii) morte de familiar que enseja condenação ao responsável do pagamento dos rendimentos do falecido quando em vira e apura-se que a pessoa, já falecida, estava há anos sem ocupação; e (iii) serviço avaliado sem qualquer expressão econômica.
Deve-se rememorar também o caso de uma sentença penal transitada em julgado que possui como efeito anexo o dever de indenização na esfera cível. Como este dever de indenização depende de prévia liquidação, é possível que o magistrado, evidentemente respeitando a sentença penal no tocante à condenação, não encontre nenhum dano6.
Freddie Didier7 também ilustra com a hipótese de o autor alegar “que os reajustes no seu benefício previdenciário deveriam ser feitos de acordo com um determinado índice, distinto do utilizado pela autarquia previdenciária, e vê reconhecido o seu direito por sentença, que remete à posterior liquidação o cálculo das diferenças mensais, mas na liquidação se percebe que o índice preferido pelo autor/liquidante e cuja aplicação foi imposta por sentença é pior do que aquele até então utilizado pela autarquia previdenciária”.
Haveria uma cisão entre o reconhecimento do an debeatur na fase de conhecimento, e postergação do quantum debeatur para a liquidação, em razão de alguma situação que impeça que estas atividades cognitivas se realizem na mesma fase processual. Na prática, o credor que fora vencedor na fase cognitiva teve seu direito reconhecido, mas houve uma postergação da obtenção do montante devido para a liquidação, por várias situações justificáveis previstas na lei processual.
O resultado da apuração poderá produzir débito igual a zero, como fruto de um procedimento concluído. Há uma regular liquidação, com seu efeito típico, mas ocorre uma declaração de que o valor devido é zero – não como uma impossibilidade de liquidação, mas com conclusão de uma liquidação realizada em que inexiste o dano. Logo reconhece-se uma obrigação, mas que sua liquidação, por mais estranho que possa parecer, resultou em divida zero.
Tal ocorrência difere-se da hipótese em que o autor, mesmo sendo possível, não apresenta provas suficientes do dano na fase de conhecimento, ocasião em que o julgador deve apreciar o pedido de acordo com o ônus da prova nos termos do art. 373, do CPC. Resultará em sentença decidindo pela improcedência do pedido, sob pena de se resultar numa vedada sentença condicional.
Existe um questionamento acerca da impossibilidade de resultar em liquidação zero por suposta violação à vedação ao non liquet, estampada no art. 140 do CPC. Este argumento é afastado porque não há uma omissão de julgamento, mas situação em que não se mostraria possível, em tese, a mensuração do dano (quantum debeatur) ainda na sentença e que sua postergação seria autorizada pela lei. Houve, sim, julgamento – ainda que incompleto -, reconhecendo-se ao menos o an debeatur (existência de uma dívida). Repise-se, por outro lado, que se em cognição exauriente o magistrado compreendeu não haver prova do dano ou da existência dívida, a improcedência do pedido é imperiosa, não havendo se falar sequer em liquidação.
Outra questão relevante surge: há afronta à coisa julgada na liquidação igual à zero? Afinal, condenar um devedor a indenizar o credor e, após, dizer que ele nada deve, parece ser uma situação violadora do dispositivo sentencial, encontrando provável óbice no art. 509, § 4º, do CPC, diz que na liquidação é vedado discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou.
A resposta é negativa. Não há uma modificação da sentença, mas descobre-se que o valor devido é igual a zero, já que postergada sua apuração. Na prática, há uma frustração da expectativa do credor, o que com certeza de uma perplexidade, já que a sentença da fase de conhecimento teria uma eficácia puramente normativa.
Em seu Código de Processo Civil Anotado (2018), ao comentar o regime jurídico da liquidação de sentença, o Professor Humberto Theodoro Júnior faz referência a julgado do STJ que afasta a alegação de violação à coisa julgada sob o fundamento de que a liquidação zero, ainda que seja uma situação não desejável, tem o condão de adequar à realidade uma sentença condenatória que, por ocasião de sua liquidação, mostra-se vazia, porquanto não demonstrada sua quantificação mínima e, por conseguinte, sua própria existência10.
Em diversas ocasiões, o STJ reconheceu a possibilidade de liquidação zero, indicando-se, por todos, o Recurso Repetitivo REsp 1347136 (Temas 613 e 733 do STJ), que analisa diversos precedentes da Corte Cidadã que reforçam a sua aplicação no direito processual brasileiro.
Em arremate, uma crítica é indispensável. A liquidação zero terá maior abrigo na liquidação pelo procedimento comum (art. 509, II, CPC), em razão de se amoldar melhor na hipótese de se necessitar alegar e provar fato novo, sendo difícil que ocorra em liquidação por arbitramento ou quando se tem alguma referência ou valor mínimo já disposto em sentença, em que seja apurável o acréscimo contabilmente.
Porém, certamente haverá situações em que o magistrado, em vez de proceder ao correto exame das provas e acertamento do débito na sentença, em desacordo com as hipóteses da lei postergará a apuração de um dano para liquidação, em pretensa celeridade processual. E, na liquidação, atingindo-se o valor zero, se perceberá a incorreção do procedimento adotado e que o pedido condenatório deveria ter sido, na verdade, julgado improcedente na fase de conhecimento.
Por isso é que considero extremamente feliz a constatação de Fredie Didier Jr. ao alertar que a liquidação zero pode ocorrer, provavelmente, porque “na fase cognitiva inicial não foram investigadas a contento as circunstâncias de fato que supostamente alicerçavam o direito afirmado pelo credor. O suporte fático do an debeatur não estava completo e a deficiência da análise cognitiva termina por resultar numa decisão que firma um preceito equivocado.”
De forma pertinente, conclui que “o problema é que muitas vezes esse equívoco somente se revela durante a liquidação”.
Autor: Thomaz Carneiro Drumond
Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/358526/liquidacao-igual-a-zero-liquidacao-sem-dano-ou-sem-resultado-positivo