Muitas famílias vivem, por gerações, o trauma gerado por um estado caloteiro. Conheço bem dramas do assalto e confisco de patrimônio fundiário amealhado desde o século XIX, ser na década de 30, do século passado, tomado na mão grande por um estado dito revolucionário. O golpe consistiu na anulação da cadeia dominial de posse da terra, por motivação da nova ordem política implantada no estado da Bahia. Titulação que tinha origem no II Império, de legitimidade indiscutível. O direito foi substituído pela força bruta.
E não ficou só no confisco dos bens materiais. O assassinato por crime de mando foi o passo seguinte. Famílias foram dizimadas pela violência de mortes misteriosas. Os principais líderes das comunidades sertânicas foram passados pelo cutelo da morte por assassinatos nunca esclarecidos. Pela óbvia razão de serem patrocinados pelos “beleguins” do oficialismo.
Os pioneiros desbravadores da epopeia da conquista das inabilitadas terras sertânicas foram liquidados aos magotes e a violência se estendeu aos muitos descendentes. Os mais desafiadores tiveram o mesmo destino dos velhos patriarcas.
A riqueza confiscada foi pela ação dos novos donos do poder, redistribuída entre famílias e apaniguados da nova ordem que se implantava. Ainda hoje, a cadeia dominial fundiária daquele Estado, é motivo de polêmica e processos nos tribunais.
Se no passado foi assim, no presente, com nova roupagem, o calote oficial do Estado tem a marca sofisticada e atende pelo pomposo nome de precatório. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 11.960, que teve sua origem na Medida Provisória (MP) n.º 457. O seu fundamento era beneficiar 1.200 prefeituras nas suas dívidas com a previdência social. Autorizando parcelar em até 240 vezes as dívidas com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), vencidas até 31 de janeiro de 2009. Até a MP 457, o parcelamento desses débitos só era possível em 60 meses.
Ocorre que o senador Romero Jucá (PMDB-RR), líder do governo, espertamente e sem nenhum pudor ético enxertou autêntica fraude legislativa no texto original. A sem-vergonhice e canalhice consistiu em contrabandear emenda acabando com juros de mora na correção da dívidas judiciais dos estados e municípios.
Ou seja, uma medida provisória que tratava exclusivamente de assuntos previdenciários foi adulterada pela má-fé de um senador. E, lamentavelmente, o presidente da República, ao sancionar a nova lei, não teve a competência e o bom senso de vetar o dispositivo introduzido pelo seu líder Jucá, legitimando a malandragem esperta. Anteriormente, a legislação estabelecia juros de 6% para os precatórios e atualização monetária pela inflação. Agora, os precatórios e as dívidas dos governos em todos os níveis serão corrigidas pelo índice da caderneta de poupança. Um golpe de mestre nos possuidores de crédito de quem tem direito de receber dos estados e municípios. É a institucionalização do calote público.
E tem mais: o assalto oficial aos possuidores de precatórios não fica adstrita na lei já aprovada. O Senado aprovou recentemente a chamada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios e aguarda votação na Câmara dos Deputados. A PEC nº. 12, consagrará mais amplamente a mudança na regra no âmbito do pagamento dos precatórios. O advogado paulista Ricardo Luiz Marçal Ferreira, especialista em Direito Público e presidente do Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares, afirma: “Com mais de 500 mil credores em uma fila de espera de quase dez anos, os precatórios alimentícios devidos pelo governo de São Paulo já batem a casa dos R$ 11 milhões. A mudança de regras no âmbito do pagamento dos precatórios, permitirá ao Estado (União, estados e municípios) postergar ao bel prazer suas obrigações. A introdução desses elementos que julgo absolutamente inconstitucionais, pois ferem posições já constituídas, valida que o texto constitucional seja descumprido.”
Ora, é sabido que a imensa maioria dos administradores públicos não cumpre nem o cronograma de pagamento de dívidas judiciais. Agora, se aprovada aquela emenda constitucional, o calote público estará institucionalizado e sepultando a moralidade pública. Como diria Boris Casoy, âncora do telejornalismo da Rede Bandeirantes: “Isto é uma vergonha.”
Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Foi deputado federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a economia brasileira.
Fonte: www.parana-online.com.br