Gilberto Melo

O papel do perito judicial

O papel do perito judicial
*Gilberto Melo
 
1. Introdução
A grande maioria das perícias que são impropriamente chamadas de contábeis na verdade são perícias financeiras, envolvendo a necessidade de que o perito tenha conhecimentos aprofundados de matemática financeira e habilidade mínima com a interpretação de contratos e da matéria legal em geral. A participação do Perito Judicial como auxiliar da justiça (art. 149 do CPC 2015) é de grande importância na prestação jurisdicional quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico (art. 156 do CPC 2015). O Perito, como todo ser humano, é sujeito por todo o tempo a reações e interações com o meio.

2. O papel do perito judicial

Todos nós um impulso devido à nossa formação, hábitos e referências, de tomar partido de todos os eventos à nossa volta, de uma forma ou de outra, influenciados por diferentes motivações. Se isto acontece em todos os momentos do cotidiano, quando enxergamos as situações de maneira polarizada, com muito mais razão, consciente ou inconscientemente, o perito judicial pode ser levado a inclinar-se para uma ou outra tese ou posição defendida em um processo onde atua.Há que se lembrar que a própria instauração de um processo estabelece uma situação de conflito, que a partir dos posicionamentos das partes e advogados nos autos leva a qualquer um que tenha acesso ao processo uma carga emocional forte, que pode eventualmente arrastá-lo a uma tomada de posição, a um juízo de valor. Além de impregnar-se com a carga emocional do conflito, certamente estará influenciado pelas “verdades” interiores adquiridas ao longo de sua vida. O perito está sujeito a cair nesta armadilha ou em outras, ou seja:• Sentir-se na responsabilidade de “decidir” o processo, assumindo para si o ônus da prestação jurisdicional. Se os quesitos conduzem a mais de uma hipótese de solução da controvérsia e se a definição por uma ou outra hipótese depende de matéria de direito deve o perito apresentar em seu laudo as diferentes alternativas, com a ressalva dos respectivos aspectos influenciáveis. Por mais que salte à vista do perito qual seria a hipótese legalmente adequada, deve ele apenas apresentar todas as possibilidades em seu laudo, deixando para o juiz analisar a matéria legal, a interpretação da lei.

• Envolver-se emocionalmente na questão, identificando-se com uma das partes, encarnando um preconceito contra uma das partes, ou de alguma forma deixando-se influenciar e saindo da posição de neutralidade e imparcialidade que devem ser qualidades indispensáveis no perito.

• Premido pelo temor reverencial em relação ao Juiz, preocupar-se excessivamente em produzir um preciosismo técnico, que em tese ajudaria ao Juiz na prolação da sentença, mas na prática pode colocá-lo numa situação de impasse por não ter sido devidamente clarificada a matéria de fato da especialidade do perito.

• Pressionado pela responsabilidade de fazer uma peça técnica impecável o perito pode acabar se afastando da necessidade de se expressar numa linguagem, embora abordando aspectos técnicos, que seja compreensível ao leigo naquela ciência do conhecimento.

Além dessas ciladas de ordem subjetiva a que pode sucumbir o perito, está ele sujeito a não compreender a real natureza de sua função como auxiliar da justiça que em termos seria:

• Procurar a verdade dos fatos, colocando-se de forma neutra e imparcial.

• Ater-se à matéria de fato, da sua especialidade, negando-se a responder quesitos que dela se afastem ou que avancem na interpretação de matéria legal ou no estabelecimento de respectivos direitos, matéria de apreciação exclusiva do Juiz.

• Compreender que mesmo que os quesitos tomem posições contraditórias eles devem ser respondidos, se concernentes à matéria técnica sob exame e se não tiverem sido expressamente indeferidos pelo Juiz.

• Conscientizar-se de que, se do questionamento dos autos surgirem diferentes possibilidades de resultados de acordo com a defesa de diferentes teses vinculadas à matéria de direito a ser apreciada pelo Juiz, deve o perito apresentar as alternativas técnicas aventadas, com as devidas ressalvas de aspectos técnicos (e não de direito), relevantes e eventualmente ocultos nas defesas das teses pelas partes.

É importante lembrar que como Auxiliar da Justiça e gozando da confiança do Juiz que o nomeou, tem o Perito o dever de manifestar-se sobre estes pontos ocultos não revelados pelas partes em seus quesitos, sob pena de contribuir, por omissão, com a prolação de uma decisão equivocada, por se fundar em análise técnica que não aborde todas as variáveis envolvidas.

A linha divisória entre o limite até o qual pode ir o perito e a partir do qual terá que recuar, é tênue, entretanto. A vigilância tem que ser constante pelo perito, para que se movimente nas fronteiras de suas atribuições procurando o ponto ótimo que melhor esclareça as questões de fato, sem adentrar, contudo, na matéria de direito ou em outras especialidades que não a sua. Outro evento inquietante para o perito e que ocorre muitas vezes na prática é que há perícias nas quais as questões suscitadas na quesitação não atingem o cerne da questão. As partes se movimentam pelas bordas, muitas vezes pelo receio de que indo ao ponto estariam arriscando-se a abrirem a guarda e tornarem seus direitos mais vulneráveis ao invés de consolidá-los.

A consequência é que os quesitos nesta hipótese são formulados de maneira a tocarem apenas a superfície do conflito ou a abordarem aspectos que nada influem no objeto da pretensão colocada em Juízo. Neste caso a cautela do perito deve ser reforçada, pois no ímpeto de ver analisados os fatos essenciais ao deslinde da questão, pode acabar extrapolando os limites estabelecidos pelas partes através da quesitação.

Situação peculiar que acontece regularmente é a de processos que parecem ao perito tão claramente resolvidos com o que consta dos autos que ele não se permite avançar na investigação da matéria de fato, limitando-se a referendar determinados pontos de vista que entendem estarem consolidados nos autos. Exemplo típico é o das ações fiscais, sejam anulatórias ou execuções, onde já se percorreu um longo trajeto na esfera administrativa, através de recursos e pedidos de reconsideração que via de regra já contemplaram o princípio da ampla defesa naquele âmbito. Ocorre que quando se instaura o processo judicial, abre-se a possibilidade de um questionamento amplo sobre todo o conteúdo do processo tributário administrativo. O perito deve então abstrair-se de todo o processado nos autos administrativos e dedicar-se a uma revisão da matéria de fato desde a estaca zero, respeitando, é claro, os limites colocados pelo quesitos formulados e limitando-se à área de sua especialidade.

Os usuários da prova pericial, principalmente as partes através de seus advogados, colocam-se em relação ao trabalho do perito do Juízo de forma muitas vezes hostil, quer alegando parcialidade, quer alegando ter ficado “em cima do muro”. Esta reação é perfeitamente natural, visto que as partes exercem o seu direito de alegar o que quiserem na defesa de seus interesses. Entretanto, a partir da análise dos aspectos que levantamos linhas atrás, pode-se perceber que o munus pericial é muito mais complexo do que pode parecer a princípio, não se limitando à visão simplista de que o perito deve colocar-se de acordo com uma ou outra tese, favorável a uma ou outra parte. Este é o posicionamento típico do nosso sistema jurídico, mas que não deve ser estendido ao trabalho técnico de um perito, a quem não cabe dar razão a um ou outro, mas apresentar somente os fatos para que o Juiz possa decidir.

3. Conclusão

O perito é o olho técnico do Juiz, cabendo-lhe a análise desapaixonada da matéria de fato, abstendo-se de manifestar-se sobre matéria de direito ou fazer conclusões que possam induzir em erro o Juiz da causa, por conterem juízo de valor, mesmo que velado. Às partes e ao Ministério Público, se for o caso, sob a presidência do Juiz da causa, cabe orientar o curso da prova através de quesitos objetivos que removam a cortina de fumaça existente sobre a matéria de fato, não imputando ao perito a responsabilidade de dar rumo definitivo à solução do conflito.

* O Autor é parecerista jurídico-econômico-financeiro, especialista em liquidação de sentença e cálculos judiciais, extrajudiciais e de precatórios, propositor da tabela uniforme de fatores de atualização monetária para a Justiça Estadual aprovada no 11º ENCOGE, engenheiro, advogado e pós-graduado em contabilidade, com site em www.gilbertomelo.com.br.