Pela primeira vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou a possibilidade de uma empresa em liquidação extrajudicial usar a arbitragem para solucionar divergências em relação a um contrato assinado antes da liquidação. O posicionamento da corte, favorável ao uso do instituto, ocorreu na análise de um recurso – uma medida cautelar – proposto pela Interclínicas Planos de Saúde, cuja liquidação extrajudicial ocorreu em 2005 por determinação da Agência Nacional de Saúde (ANS).
A decisão, na avaliação de especialistas, é um importante precedente que, por analogia, poderia ser aplicado para situações similares que envolvem créditos e débitos, como em caso de falências e recuperações de empresas. Além disso, advogados que atuam da área afirmam que o voto da relatora do processo, a ministra Nancy Andrighi, da terceira turma do STJ, confirma a aplicação da arbitragem para mais uma situação controversa.
A discussão que chegou ao STJ envolve a Interclínicas e a Saúde ABC Serviços Médicos Hospitalares, operadora de planos de saúde da Grande São Paulo. A controvérsia entre as empresas ocorreu a partir da aquisição da carteira de clientes da Interclínicas pela ABC, cujo contrato tinha como previsão o uso da arbitragem em possíveis desentendimentos.
O advogado que representa a Interclínicas, Afonso Rodeguer Neto, do escritório Mattos, Rodeguer Neto, Victória, Sociedade de Advogados, afirma que a ABC praticamente não pagou os valores devidos pela aquisição da carteira. Por essa razão, a Interclínicas, que já estava em liquidação extrajudicial, entrou na Justiça com uma ação de cobrança contra a ABC.
Ao mesmo tempo, a ABC entrou com um pedido de instalação de arbitragem que está correndo no tribunal arbitral da Câmara de Comércio Brasil Canadá. Segundo a advogada Valeria Galíndez, do escritório Wald e Associados Advogados, que representa a ABC, sua cliente busca na arbitragem revisar os valores do contrato e os prejuízos gerados por ele. Ela afirma que o número de clientes da carteira seria muito menor do que o vendido. Na Justiça, o advogado Rodeguer Neto, da Interclínicas, alega que uma empresa em liquidação extrajudicial não estaria sujeita ao uso da arbitragem porque a questão envolveria direito público e, portanto, não disponível. Sendo assim, a Lei de Arbitragem, não autorizaria a aplicação do instituto, argumenta. O interesse público decorreria do fato de a liquidação extrajudicial envolver credores tributários e trabalhistas.
A primeira instância da Justiça de São Paulo concedeu uma medida cautelar para suspender a arbitragem, mas a ABC recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) determinou que a arbitragem fosse destrancada. A Interclínicas recorreu novamente, por meio de uma medida cautelar e um recurso especial ao STJ. Na prática, o que se buscava com a medida cautelar era a suspensão da arbitragem, o que não foi obtido pela empresa. O advogado da Interclínicas lembra que o recurso especial ainda está pendente de julgamento. A ministra Nancy Andrighi, dentre outros pontos, considerou que a cláusula compromissória foi firmada antes da liquidação extrajudicial. Além disso, ela afirma que o fato de a empresa estar em liquidação não impede o liquidante de participar amplamente do procedimento arbitral.
O advogado Arnoldo Wald, que representa a ABC, entende que o precedente poderia ser aplicado por analogia a situações similares à liquidação como falência e recuperação de empresas. “É uma decisão que mexe com todo o sistema”, afirma. Para o advogado especializado em arbitragem, José Emílio Nunes Pinto, titular do escritório que leva seu nome, a arbitragem poderia ser aplicada para a recuperação de empresas nas situações em que se discute direitos disponíveis. Para ele, um dos pontos mais importantes do acórdão do STJ seria o fato de a ministra considerar que a arbitragem não coloca em risco o interesse público.
O advogado João Bosco Lee, também especialista em arbitragem, afirma que a decisão consagra o chamado princípio da competência-competência, pelo qual cabe ao tribunal arbitral decidir, primeiramente, se possui ou não competência para julgar uma determinada controvérsia.
Fonte: Valor Econômico