Não há que se confundir a atualização monetária com o juro remuneratório e o moratório, pois a primeira reflete a correção do valor nominal do patrimônio no decorrer do tempo, o segundo é a recompensa paga por cada período durante todo prazo de privação do patrimônio e o terceiro é uma penalização paga por cada período durante todo o atraso na entrega do patrimônio.
Nesta linha, a atualização não se apresenta como um plus que se adita, mas um prejuízo que se evita, pois quem paga com correção monetária não paga nada mais do que deve e sim rigorosamente o que deve, assim como aquele que recebe sem correção monetária não recebeu aquilo que lhe era devido, ressalvando a existência de acordo por escrito em sentido contrário.
Por conta de tais características, a escolha do índice de atualização monetária nos negócios de longa duração, como os financiamentos imobiliários, é muito importante para não existir desvio de rentabilidade para ambas as partes ao final do negócio.
Diante do grande déficit habitacional brasileiro, o governo propôs soluções por meio de programas de financiamento imobiliário, como o Minha Casa, Minha Vida, da Caixa Econômica Federal, para famílias com renda entre um a três salários mínimos, dentre outros programas de disponibilização de crédito para aquisição de imóveis, todos devidamente regidos pelo Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e intermediado por diversas instituições financeiras.
Unindo os pontos, resta evidente a fundamental importância da correta designação do índice de atualização monetária nos contratos de financiamento imobiliário, especialmente por serem de longa duração.
Em 18 de agosto de 2010, foi criada a Súmula 454 do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, com a seguinte redação: “Pactuada a correção monetária nos contratos do SFH pelo mesmo índice aplicável à caderneta de poupança, incide a Taxa Referencial (TR) a partir da vigência da Lei 8.177/91”.
Transcrita súmula veio autorizar a utilização da TR como índice de atualização monetária de financiamentos imobiliários. Todavia, respeitosamente, a TR não reflete índice de atualização monetária, apesar de ser inapropriadamente utilizada para tal finalidade na correção dos valores aplicados em caderneta de poupança, pois a TR é juro remuneratório, calculado a partir da remuneração mensal média dos depósitos a prazo fixo, captados nos mais diversos bancos (comerciais, investimentos, títulos públicos, etc.), conforme metodologia aprovada pelo Conselho Monetário Nacional.
Por tais razões, desde o início de sua existência, a TR nunca deu negativa e não foi por falta de deflação, mas sim por ser a TR taxa de juro remuneratório e se o juro remuneratório fosse negativo, contrariaria sua finalidade primordial. Logo, incidir TR e juro remuneratório é bis in idem, por idêntica natureza.
Apesar de atuar em benefício do poupador nos meses de deflação, a TR jamais poderia ser utilizada como índice de atualização, exatamente por não refletir a valorização ou desvalorização da moeda. Consequentemente, a utilização da TR como índice de atualização provoca uma descaracterização na função da correção monetária nos negócios imobiliários.
Os efeitos da descaracterização na função da atualização são menos perceptíveis nas operações realizadas nos mercados financeiros, de valores mobiliários, de seguros, de previdência privada, de capitalização e de futuros, por inexistir relação imediata com uma base corpórea de referência (ex: valor de imóvel).
Diversamente, nos negócios envolvendo bens corpóreos, os efeitos da descaracterização na função da atualização podem ser gritantes, por conta do desequilíbrio entre o valor do negócio (crédito) e sua relação imediata com o patrimônio corpórea (imóvel), razão pela qual, respeitosamente, discordamos da recém criada Súmula 454 do STJ, que muito prejudicará os consumidores.
Não obstante a existência de previsão legal (artigo 17, parágrafo 5°, da Lei 9.069/95) proibindo a utilização da TR em contratos de financiamento imobiliários, a Súmula 454 do STJ autorizou seja ela utilizada como índice de atualização de dívida relacionada a contrato regido e fomentado pelo Sistema Financeiro da Habitação.
Em vista da descaracterização na função da correção monetária causada pela utilização da TR como tal índice, infelizmente, o STJ não vislumbrou os efeitos maléficos da deflação em ditos contratos, pois sempre que ocorrer o fenômeno da deflação, o consumidor será prejudicado duplamente, visto que sua dívida vai aumentar e o poder aquisitivo da moeda vai diminuir. Logo, todo mês que houver deflação, o valor da dívida cresce, o valor da parcela a ser paga aumenta e, agora o grande descompasso, o valor do imóvel (garantia) decresce, bem como a capacidade de pagamento do consumidor devedor diminui.
No futuro próximo, conforme as peculiaridades de cada caso, é muito possível ter o seguinte quadro concomitante:
a) Parcelas a serem pagas em valor muito superior à capacidade de pagamento do consumidor, resultando em inadimplemento e possível insolvência;
b) Dívidas a serem pagas em valor muito superior ao valor do imóvel dado em garantia, resultando em super endividamento do consumidor para adquirir sua casa própria, bem como em déficit de lastro sobre o débito e possível afetação estrutural do SFH;
Como vimos recentemente nos Estados Unidos, uma crise imobiliária pode afetar todo o sistema, independentemente de a causa ser diversa. A crise americana veio de um super-aquecimento do mercado imobiliário, devido às baixas taxas de juros, que geraram uma intensa especulação de compra de casas, por meio de empréstimos baratos, com baixo controle sobre o registro das garantias, formando uma bolha no mercado com casas supervalorizadas, impossibilitando os compradores de pagarem por suas casas o valor que supostamente valiam. Por tais razões, ocorreu uma acentuada corrida aos bancos para a hipoteca de casas que não tinham como ser pagas, sendo garantias reais insuficientes, gerando uma bola que infectou todo o sistema financeiro dos Estados Unidos e de diversos países do mundo.
Outro exemplo evidente foi a Espanha, onde os efeitos de um movimento parecido de especulação imobiliária comprometeram um país que era exemplo de crescimento na Europa e teve seu sistema bancário, mesmo apoiado nos cajas que deveriam permitir ao sistema financeiro espanhol operar sem alto risco – pois sua missão definida pela Confederación Española de Cajas de Ahorros (Ceca) é “criar riqueza econômica e social, evitando a exclusão e gerando tecido social”, – a Espanha foi o país na Europa com a maior quantidade de instituições em risco nos testes de estresse realizados pelo Banco Central Europeu.
Apenas com os dois exemplos trazidos, podemos dimensionar a afetação de uma crise no mercado imobiliário, prejudicando direta e essencialmente a população de cada nação. No Brasil, vemos alguns dos sintomas destes países, pois muitos já consideram nosso mercado imobiliário superaquecido. Todavia, os bancos não terão afetada sua saúde se o preço dos imóveis cair por conta de deflação, apenas o consumidor será prejudicado com tal fato, pois, por conta da Súmula 454 do STJ, em mês que houver deflação, em desacordo à realidade econômica, continuar-se-á a elevar a dívida e as parcelas que deverão ser pagas pela população.
Mesmo com o calote de milhares de compradores, que não terão como pagar a parcela do financiamento de suas casas e/ou suas dívidas integrais, os bancos não deverão sofrer como os europeus ou os americanos, mas apenas terão uma diminuição em seus polpudos lucros, pois os valores supostamente devidos são elevadamente irreais e a diferença não recebível por falta de capacidade do mutuário em realidade inexistiria.
Em suma, a utilização da TR como índice de atualização monetária nos contratos de financiamento, em especial de bens imóveis regidos pelo SFH, combinada com períodos de deflação, prejudicará a integralidade dos consumidores-devedores, além de caracterizar bis in idem, pois sobre ditos valores incide ainda juro remuneratório, e possibilitará a criação de uma “bolha imobiliária” por conta dos valores das dívidas poderem superar o valor dos bens dados em garantia, razão pela qual manifesto meu expresso e púbico pedido ao STJ para revisar sua Súmula 454, pois a TR não pode ser utilizada como índice de atualização monetária, especialmente nos contratos envolvendo bens corpóreos.
Autor: André Zanetti Baptista, advogado do escritório Simões Caseiro Berbel & Guimarães Nunes Advogados e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP
Fonte: www.conjur.com.br