Gilberto Melo

A EC 113 e os possíveis problemas de direito intertemporal na aplicação da Selic

Historicamente, um tema que sempre suscitou problemas em relação à litigância que envolve a Fazenda Pública são os juros e correção monetária. Várias eram as discussões, tais como o período em que incide um ou o outro, em que ambos incidem. Por vezes o grande problema era a taxa de juros aplicável ou de correção monetária.

Vários precedentes obrigatórios objetivaram resolver esses problemas, tais como o tema 905 do STJ e as decisões do STF no tema 810 da repercussão geral e nas ADINs 4.357 e 4.425. Em relação aos precatórios, chegamos a ter a edição da Súmula Vinculante nº 17 que objetivava resolver em quais períodos incidia a correção monetária e em quais também haveria a incidência dos juros [1]. Até hoje, todas essas temáticas reaparecem e divergências ocorrem em decisões judiciais.

Até que veio a Emenda Constitucional n. 113/2021 que, em seu artigo 3º, previu o seguinte:

“Artigo 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente”.

Em resumo, o texto normativo impôs que a Selic passasse a ser utilizada como taxa substitutiva da correção monetária e juros moratórios dos processos que envolvam a Fazenda Pública. Não importa se em dado momento do processo incide correção monetária de forma isolada ou em conjunto com os juros. Incidirá a Selic, que substitui ambos. Não importa a natureza do crédito, que tantas discussões judiciais gerou, como se verifica no tema 905 do STJ: incidirá a Selic. Essa unificação facilitará bastante o pagamento dos precatórios, por tornar irrelevante as discussões dos momentos em que incide apenas correção monetária ou também juros moratórios.

Um adendo é importante: a Selic já era utilizada para as causas tributárias, a diferença é que agora foi estendida para todas e quaisquer causas que envolvam a Fazenda Pública.

A Selic, tal como prevista na EC nº 113/202 deve ser a única taxa a incidir nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, excluindo quaisquer outras que poderiam em tese com ela ser cumuladas. É uma taxa que pode variar mês a mês.

A Emenda Constitucional nº 113/2021 entrou em vigor na data de sua publicação (9/12/2021), tal como previsto pelo seu artigo 7º. Desse momento em diante, a única taxa a incidir nas condenações que envolvam a Fazenda Pública será a taxa Selic, com uma provável diminuição de todas as discussões judiciais que envolvem a questão.

Ocorre que ainda existem diversos temas que precisam de um breve esclarecimento, em especial as questões de direito intertemporal. Para tanto, algumas premissas devem ser estabelecidas:

No Brasil, historicamente aplica-se a regra da irretroatividade das leis [2]. Atualmente, a Constituição de 1988 estabelece em seu art. 5º, XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Texto normativo bem similar já constava do artigo 6º da LINDB.  As emendas constitucionais seguem essa mesma regra.

A Emenda Constitucional nº 113/2021, ao alterar o regime jurídicos dos juros e da correção monetária nos casos que envolvem a Fazenda Pública não é exceção à regra. Em outros termos, a taxa Selic não pode ter eficácia retroativa, incidindo em período anterior a 09 de dezembro de 2021.

Uma outra premissa importante é a de compreender que, tanto os juros moratórios, como a correção monetária em relação aos créditos nos quais incidem, consistem em relações de trato sucessivo. Ou seja, elas incidem mês a mês e podem ter seus índices alterados no decorrer dessa relação [3]. Não se trata de nenhuma novidade, mas de tema corriqueiro no direito brasileiro.

A título de exemplo, é possível trazer uma das teses relativas aos juros de mora e correção monetária fixados pelo STJ no tema 905:

“As condenações judiciais de natureza administrativa em geral, sujeitam-se aos seguintes encargos: a) até dezembro/2002: juros de mora de 0,5% ao mês; correção monetária de acordo com os índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; b) no período posterior à vigência do CC/2002 e anterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora correspondentes à taxa Selic, vedada a cumulação com qualquer outro índice; c) período posterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança; correção monetária com base no IPCA-E”.

É perceptível que, com as diferentes alterações da legislação, juros e correção incidem mês a mês, com a contínua mora e a demora para o pagamento do crédito. Imagine-se uma condenação contra a Fazenda Pública originada em 2001 e paga em 2010: até dezembro de 2002, incidirá juros de mora de 0,5% ao mês; iniciada a vigência do CC/2002, haverá aplicação da taxa Selic e, após a entrada em vigor da Lei 11.960/2009, o índice de remuneração da caderneta de poupança.

Com a EC nº 113/2021 não será diferente, incidindo a partir do início de sua vigência. Estabelecidas as premissas da irretroatividade e da relação de trato sucessivos dos juros e correção monetária com os respectivos créditos, vamos aos possíveis encaminhamentos:

1) Os créditos que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de qual era a taxa aplicável até 8 de dezembro de 2021, terão sua taxa alterada para incidência da Selic a partir de 9 de dezembro de 2021. A aplicação da taxa Selic não pode ocorrer para períodos anteriores a 9 de dezembro de 2021, dada a vedação da retroatividade [4].

Melhor explicando: se no ano de 2022 a Fazenda Pública for condenada a pagar dívida relativa ao ano de 2020, os juros e a correção monetária serão aplicados da seguinte forma: correção monetária pelo IPCA-E e juros moratórios com base na remuneração da caderneta de poupança até 08 de dezembro de 2021. A partir de 09 de dezembro de 2021, a atualização do valor devido deve ser realizada pela taxa Selic para todos os créditos que ainda estiverem em mora.

2) Para as decisões que transitaram em julgado até 8 de dezembro de 2021, ainda assim, poderá incidir a nova taxa.

Aqui é preciso fazer uma distinção.

Consoante estabelecido pelo STJ no tema 905, “não obstante os índices estabelecidos para atualização monetária e compensação da mora, de acordo com a natureza da condenação imposta à Fazenda Pública, cumpre ressalvar eventual coisa julgada que tenha determinado a aplicação de índices diversos, cuja constitucionalidade/legalidade há de ser aferida no caso concreto”. Em outros termos, se a decisão transitou em julgado afirmando que incide juros de 0,5% ao mês, mas o correto era o índice da caderneta de poupança, não pode ocorrer alteração dessa decisão por força da coisa julgada. Note-se: a decisão transitou em julgado violando o precedente do STJ, no tema acima mencionado.

A situação, no caso da nova Selic é diferente. Não se pretende alterar o conteúdo da coisa julgada, mas simplesmente há incidência de uma nova taxa no decorrer do tempo. Como mencionado acima, tem-se uma relação de trato sucessivo e, havendo alteração do direito, ele deve ser aplicado imediatamente. A decisão não estava incorreta: ela seguiu o regime jurídico do seu período e precisa ser atualizada pela nova taxa, alterada após o trânsito em julgado.

Há autorização no ordenamento para tal interpretação no artigo 505, I, do CPC, que permite a revisão do que foi estatuído na sentença, caso haja modificação no estado de direito em relações de trato continuado – como é exatamente o caso da incidência da Selic. Houve alteração do estado de direito, que consiste na mudança da taxa que incidirá a título de juros e correção monetária.

A título de reforço dessa conclusão, afirma a própria EC nº 113/2021, em seu artigo 5º, que “as alterações relativas ao regime de pagamento dos precatórios aplicam-se a todos os requisitórios já expedidos”. Por mais que seu objetivo seja o de regular outras alterações da própria EC no regime de precatórios, ela também atua em relação à incidência da Selic, que passa a incidir em todos os precatórios. Recorde-se que só há precatório após o trânsito em julgado e ele seria irrelevante para impedir a nova taxa.

3) Em relação às decisões proferidas a partir de 08 de dezembro de 2021 com o trânsito em julgado, alguns problemas podem ocorrer. Isso porque, a partir de 09 de dezembro, como mencionado, já estaria incidindo a Selic. No entanto, se a decisão transitar em julgado afirmando, por exemplo, que deve incidir o IPCA-E a título de correção monetária e o índice da caderneta de poupança a título de juros moratórios no período em que já se encontra vigente a EC nº 113/2021, a decisão é inconstitucional.

A decisão é inconstitucional porque determina a aplicação de índice já revogado pela EC 113/2021, para o período a partir de 09 de dezembro de 2021. Ocorre, nessa situação, o problema destacado pelo STJ no tema 905: o índice fixado pela decisão é incorreto, pois desrespeita a lei em vigor no momento de sua prolação, mas, ainda assim, houve trânsito em julgado. Durante o cumprimento de sentença, o juiz não poderá alterá-lo, por força da coisa julgada. Para tanto, haverá necessidade de ajuizamento de ação rescisória, tendo por base a violação de norma jurídica (artigo 966, V, CPC), que seria exatamente o artigo 3º da EC 113/2021.

4) Em relação às decisões proferidas após 09 de dezembro de 2021, há apenas uma diretriz a ser seguida. Como já apontado, dada a relação de trato sucessivo com o crédito, passa a incidir a taxa Selic e tal situação deve ser fixada na sentença.

Utilizando o mesmo exemplo do tema 905 do STJ, para um crédito contra a Fazenda Pública surgido em 2015, uma decisão proferida em 15 de dezembro de 2021 deve estabelecer que deve incidir juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança, com correção monetária com base no IPCA-E desde o surgimento do crédito e, a partir de 09 de dezembro de 2021, substituindo os índices de correção e de juros moratórios anteriores, passa a incidir a taxa Selic.

Em um exemplo mais concreto, com o cuidado em relação ao direito intertemporal, já há decisões aplicando esse raciocínio, como a sentença proferido no processo 0032224-20.2020.8.25.0001, pela 18ª Vara Cível de Aracaju, em 20 de fevereiro de 2022:

 para a solução do caso dos autos, considerando que se trata de demanda com Condenações judiciais de natureza administrativa em geral, há que se aplicar, quanto a correção monetária e aos juros moratórios os seguintes encargos: correção monetária pelo INPC, desde o inadimplemento, nos termos da cláusula 4.9 do contrato administrativo e, quanto aos juros, considerando que o inadimplemento se deu no período posterior à vigência da Lei 11.960/2009, deve se o índice de remuneração da caderneta de poupança; e, ainda, no período posterior à vigência da EC n.º 113/2021 (09/12/2021), a atualização monetária (correção e juros moratórios) será pela taxa Selic.

A título de conclusão, a inserção da Selic como taxa única tende a simplificar consideravelmente as discussões que envolvem juros moratórios e correção monetária nos casos que envolvem a Fazenda Pública. No entanto, como muitas vezes ocorre, e ainda mais em relações de trato sucessivo, a alteração das taxas antes incidentes tende a trazer alguns problemas de direito intertemporal, que precisam de uma maior atenção, para não haver a necessidade de novas discussões judiciais sobre a temática.

Autor: Ravi Peixoto

Fonte: anpm.com.br