Gilberto Melo

As inconstitucionalidades da Emenda Constitucional 136/2025

1. O problema histórico dos precatórios no Brasil

Os precatórios são ordens judiciais de pagamento expedidas contra a Fazenda Pública após o trânsito em julgado. Devem ser incluídos no orçamento do ente devedor e pagos no exercício seguinte, respeitada a ordem cronológica e as preferências constitucionais (natureza alimentar, idosos, doentes graves e pessoas com deficiência). Valores menores são pagos por RPVs.

Apesar da clareza constitucional, o atraso no pagamento de precatórios é recorrente, sobretudo entre Estados e Municípios. Ao final de 2024, o estoque de precatórios atrasados dos entes subnacionais era de R$ 193 bilhões. Desde 1989, sucessivas Emendas Constitucionais tentaram equacionar o problema por meio de moratórias e parcelamentos, gerando alívio fiscal imediato, mas acumulando passivos crescentes.

Diversas dessas emendas foram questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF). Nas ADIs 2356, 2362, 4357, 4425 e 7064, por exemplo, o STF declarou a inconstitucionalidade de regimes que postergavam indefinidamente o pagamento, limitavam artificialmente desembolsos ou reduziam correção monetária e juros, por violação a direitos fundamentais como coisa julgada, separação de poderes e direito de propriedade. A Corte tem reiteradamente afirmado a centralidade do regime constitucional originário dos precatórios.

2. A EC 136/2025 e suas principais alterações

Em 9/9/2025 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 136/2025, oriunda da PEC 66/2023. A emenda altera profundamente o regime de precatórios, com destaque para:

  • retirada parcial dos precatórios das despesas primárias e da meta fiscal;
  • antecipação da data-limite de apresentação dos precatórios para 1º de fevereiro;
  • limitação anual do pagamento de precatórios por Estados, DF e Municípios entre 1% e 5% da Receita Corrente Líquida (RCL), conforme o estoque da dívida;
  • eliminação de prazo final para quitação do passivo;
  • possibilidade de acordos diretos com renúncia de parte do crédito, sem limite de deságio;
  • atualização monetária pelo IPCA e juros de mora limitados a 2% ao ano, ou à Selic, se inferior;
  • vedação expressa à incidência de juros compensatórios;
  • exclusão de correção monetária sobre valores já depositados em contas judiciais;
  • aplicação retroativa do novo regime a precatórios já inscritos.

Segundo seus defensores, a EC confere previsibilidade orçamentária e evita o colapso financeiro dos entes federativos. A Confederação Nacional dos Municípios estima economia de até R$ 1,5 trilhão ao longo do período de parcelamento.

3. A ADI 7873 e as impugnações do CFOAB

Diante dessas alterações, o Conselho Federal da OAB ajuizou a ADI 7873, impugnando diversos dispositivos da EC 136/2025 e requerendo medida cautelar para suspender seus efeitos. Sustenta-se que a emenda institucionaliza o inadimplemento estatal, reedita normas já declaradas inconstitucionais e projeta crescimento do estoque da dívida para cerca de R$ 880 bilhões até 2035.

O CFOAB aponta violação ao Estado Democrático de Direito, à separação dos poderes, ao direito de propriedade, à isonomia, à coisa julgada, à segurança jurídica, à razoável duração do processo e às cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV, da CF). A ação foi distribuída ao Ministro Luiz Fux e aguarda apreciação da medida cautelar.

Vale lembrar, a título de referência jurisprudencial, que, em 28/11/2000, a Confederação Nacional da Indústria propôs a ADI 2356 para discutir a inconstitucionalidade do art. 2º da Emenda Constitucional 30, de 13/9/2000, a qual acrescentou o art. 78 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), prevendo a possibilidade de parcelamento em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, dos precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000. Foram ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os tratados no art. 33 do ADCT e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo.

O caso foi julgado em 7/5/2024 e se declarou a inconstitucionalidade da norma impugnada, respeitando-se os parcelamentos realizados sob o regime instaurado pela norma declarada inconstitucional, até a concessão da medida cautelar, em 25/11/2010.

Em síntese, o Supremo entendeu que, ao editar norma sobre o regime de pagamento de precatórios, o legislador constituinte derivado violou direitos fundamentais garantidos pela Constituição, especialmente cláusulas pétreas (art. 60, § 4º).

4. As inconstitucionalidades da EC 136/2025

A EC 136/2025 permite que decisões judiciais definitivas deixem de ser cumpridas em prazo razoável, submetendo o pagamento de precatórios a limites orçamentários e escolhas políticas. Ao criar tetos percentuais, eliminar prazo de quitação, reduzir atualização e juros e permitir acordos com deságio ilimitado, a emenda desfigura o art. 100 da Constituição e esvazia a autoridade do Judiciário.

A postergação indefinida e a desvalorização dos créditos violam a efetividade da tutela jurisdicional, a coisa julgada e a segurança jurídica. A aplicação retroativa do novo regime a precatórios já inscritos afronta o direito adquirido e a proteção da confiança legítima. Além de tudo, a redução da correção monetária e dos juros configura confisco indireto, em afronta ao direito de propriedade.

Há também quebra da isonomia, pois o Estado se beneficia de prerrogativas que não concede aos cidadãos quando devedores, além de afronta à moralidade administrativa ao autorizar o descumprimento sistemático de decisões judiciais.

5. Aspectos técnicos e socioeconômicos

Estudos juntados à inicial da ADI, elaborados por instituições renomadas, como o BTG Pactual – Macro Research, o Comitê Nacional de Precatórios e o Conselho Nacional de Justiça demonstram que se as regras da EC 136/2025 já estivessem em vigor em 2024, haveria uma redução de cerca de 42% nos pagamentos de precatórios naquele ano e o estoque da dívida poderia atingir R$ 880 bilhões em uma década. Ou seja, o valor devido tende a crescer indefinidamente, pois os pagamentos previstos são estruturalmente inferiores ao acréscimo anual de juros e de correção monetária.

Além disso, dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que apenas três Estados e cerca de 6% dos Municípios teriam dificuldades reais para cumprir o prazo anterior de quitação dos precatórios (até 2029).

Não obstante, a EC 136/2025 impõe uma moratória generalizada, atingindo inclusive entes federativos que estavam adimplentes ou que teriam condições de quitar seus precatórios no regime anterior. Em outras palavras, a EC não cria um regime excepcional para os poucos entes que apresentam efetivas dificuldades de pagamento, mas estende o benefício a todos, inclusive aos que não precisam, incentivando o calote institucionalizado.

Prefeitos e governadores que antes honravam suas obrigações passam a ter estímulo para não pagar, pois a inadimplência se torna permitida e até vantajosa financeiramente.

A EC 136/2025 também altera a forma de atualização dos precatórios, determinando que a correção monetária será pelo IPCA e os juros de mora limitados a 2% ao ano, ou, se menor, pela taxa Selic.

Os pareceres técnicos juntados com a inicial da ADI proposta pelo CFOAB demonstram que essa sistemática reduz artificialmente o valor dos créditos, não recompõe a inflação real e representa uma expropriação indireta do patrimônio dos credores.

Além disso, a Fazenda Pública passa a ser beneficiada por índices inferiores aos que ela própria cobra dos contribuintes em débitos tributários, o que viola o princípio da isonomia.

A postergação e a desvalorização dos pagamentos de precatórios têm efeitos negativos para a economia e a sociedade, na medida em que:

  • desestimula o mercado de precatórios: o risco de calote e a incerteza quanto ao pagamento desvalorizam os precatórios no mercado secundário, prejudicando credores que dependem da venda desses ativos;
  • aumenta o custo de obras e serviços públicos: o risco de inadimplência é precificado em licitações, elevando o custo para o Estado e, consequentemente, para a sociedade;
  • causa prejuízo a credores vulneráveis: a maioria dos credores são pessoas físicas, idosos, servidores públicos, pequenos fornecedores e titulares de créditos alimentares, que dependem do recebimento para sua subsistência;
  • reduz drasticamente a credibilidade do Estado: o inadimplemento institucionalizado afeta a confiança dos cidadãos e investidores no Estado brasileiro, podendo gerar fuga de capitais, aumento do custo de financiamento público e instabilidade macroeconômica;
  • agrava a desigualdade: o não pagamento de precatórios, especialmente de natureza alimentar, contribui para a má distribuição da renda e prejudica a efetivação de direitos sociais.

Essas consequências, já no curto prazo, podem trazer graves efeitos deletérios à economia e à população, devendo ser igualmente sopesadas.

6. Conclusão

A EC 136/2025 beneficia o Poder Público, na medida em que traz novos limites para o pagamento de precatórios, retirando-os do teto de despesas primárias e permitindo seu parcelamento em um prazo mais longo, o que proporciona maior elasticidade financeira e previsibilidade orçamentária.

Além disso, ela flexibiliza a desvinculação de receitas municipais, possibilitando o uso do superávit dos fundos em áreas prioritárias e facilitando o pagamento de dívidas previdenciárias.

Mas a EC 136/2025 não resolve o problema do passivo de precatórios. Ao contrário. Ela contribui para o aumento da fila, institucionaliza o inadimplemento, desestimula a responsabilidade fiscal, compromete a confiança no Estado, agrava a insegurança jurídica, desrespeita decisões judiciais e prejudica credores, especialmente pessoas físicas e vulneráveis.

Enquanto a EC 136/2025 representa um alívio ao orçamento público da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ela traz severos prejuízos aos titulares de créditos contra a Fazenda Pública, o que exige uma revisão do tema, que está longe de estar pacificado.

Os problemas orçamentários não podem se sobrepor à justa expectativa que o credor do ente governamental tem de receber o que lhe é devido integralmente e em tempo razoável, sob pena de uma verdadeira ruptura aos mais comezinhos princípios do Estado Democrático de Direito.

Existem alternativas menos gravosas aos credores para resolver o passivo de precatórios, como a adoção de regimes diferenciados apenas para entes comprovadamente incapazes de quitar seus débitos, sem generalizar a moratória e sem sacrificar direitos fundamentais e a moralidade.

Caberá ao STF, no julgamento da ADI 7873, ponderar esses elementos e promover o diálogo institucional necessário para enfrentar o problema sem destruir o núcleo essencial da Constituição e a credibilidade dos entes públicos.

Autoras: Ariane Costa Guimarães e Maricí Giannico

Fonte: obrasilianista.com.br