A desjudicialização da execução das dívidas de dinheiro já é fenômeno antigo no Primeiro Mundo. Civilizações primorosas como a dos povos anglo-saxônicos nem chegaram a enfrentar o problema, uma vez que por elas a execução civil sempre foi tratada como função administrativa, geralmente confiada às autoridades policiais. Entre os países europeus de tradição civil law, há muito tempo se acha em marcha a desvinculação, no todo ou em parte, da execução da atividade jurisdicional. Na Suécia o processo já atingiu seu grau máximo, mediante instituição de um departamento da Administração que se encarrega da execução, totalmente fora dos organismos judiciários. Noutros países, vigora o regime dos agentes executivos, aos quais se atribui o procedimento da execução tanto dos títulos judiciais como dos extrajudiciais. É o que, por exemplo, já se acha institucionalizado pelo Código de Processo Civil de Portugal e pelo Código das Execuções Civis da França. Tais agentes, embora atuem com autonomia na prática dos atos executivos, têm seus atos sujeitos ao controle de legalidade do Poder Judiciário, como ocorre com qualquer agente de serviço público.
Atualmente, há diretrizes supra nacionais editadas pela Comunidade Europeia recomendando e orientando a implantação do sistema de agentes executivos, nos moldes de Portugal, em todos os Estados por ela congregados.
No Brasil, como não podia ser diferente o tema já vem sendo debatido há um bom tempo em sede doutrinária e acadêmica, como se pode ver da obra coletiva “Reflexões sobre a desjudicialização da execução civil”, Editora Juruá, organizada pelos Professores Elias Marques de Medeiros Neto e Flávia Pereira Ribeiro, com a colaboração de dezenas de renomados juristas e especialistas. Inúmeras são, outrossim, as teses e dissertações de pós-graduação que, nas universidades, têm por objeto a desjudicialização da execução civil e a conveniência de sua introdução no direito nacional.
Recentemente, a OAB patrocinou importante congresso em que o tema foi amplamente debatido entre juristas brasileiros e portugueses. Divulgou-se, assim, o projeto de lei 6.204/19, com o qual se pretende, por obra do Legislativo incluir no direito positivo nacional a técnica da execução civil desjudicializada.
Após tudo isto, a comunidade jurídica se viu surpreendida por Nota Técnica da AMB endereçada ao Senado Federal desaconselhando a acolhida do projeto de lei em tramitação, ao argumento, entre outros, de que os atos expropriatórios na ordem constitucional, se acham sujeitos à reserva de jurisdição e de que a proposição legislativa contraria o princípio da inafastabilidade jurisdicional.
Essa oposição, data venia, ignora a tendência universalmente estimulada à diversificação dos sistemas e métodos de pacificação de conflitos jurídicos, técnica a que o direito positivo brasileiro tem sido bastante sensível.
Tome-se, como primeiro exemplo, o juízo arbitral, que, à margem do aparelhamento do Poder Judiciário, permite que a jurisdição civil, em determinados casos, seja afastada contratualmente pelos particulares, dando ensejo a que as principais manifestações da jurisdição – sentença e coisa julgada – possam ser alcançadas sem a presença e participação da justiça estatal. Nenhuma inconstitucionalidade nisso foi detectada pelo Supremo Tribunal, numa evidente demonstração de que, nas modernas democracias, a jurisdição estatal pode e deve ser dimensionada sem o absolutismo de outrora.
É certo que o acesso à tutela jurisdicional tem caráter de garantia fundamental. O que, entretanto, não mais prevalece é que essa tutela seja prestada exclusivamente pelo Poder Judiciário. O Poder Público não pode deixar de propiciá-la ao titular do direito lesado ou ameaçado, o que, entretanto, poderá ser feito tanto pela justiça estatal como por outros organismos credenciados pela lei. É claro que, afinal, o Poder Judiciário conservará o controle de legalidade sobre a atuação desses organismos extrajudiciais.
Nesse sentido, é norma fundamental do Código de Processo Civil brasileiro que, embora seja garantida a não exclusão à apreciação jurisdicional da ameaça ou lesão a direito, “é permitida a arbitragem, na forma da lei” (art. 3º, § 1º). Além disso, também é norma fundamental do mesmo Código o dever do Estado de promover, sempre que possível a solução consensual dos conflitos (CPC, art. 3º, § 2º), cabendo aos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público a missão de estimular “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos, inclusive no curso do processo judicial (CPC, art. 3º, § 3º). Legislação especial, sob inspiração do CNJ, regula a mediação exercitada totalmente fora do sistema judiciário (Lei nº 13.140 de 26 de junho de 2015).
Observa-se que historicamente a execução extrajudicial e a solução arbitral sempre estiveram presentes, de uma forma ou outra, no direito ocidental, desde as raízes romanísticas. Em Roma, na legislação primitiva, a autoridade pública não se encarregava nem do julgamento nem da execução forçada. O pretor nomeava, caso a caso, um jurista, com a aquiescência das partes, para a função de judex, cuja sentença os interessados se comprometiam a aceitar como solução definitiva de controvérsia. Quanto à execução, não se dava nem pelo pretor, nem pelo judex, pois era tarefa do próprio credor que a cumpria por suas próprias forças. Mesmo depois que se implantou a actio iudicati, não tinha esta a função de realizar os atos executivos, mas apenas de autorizar que sua realização fosse efetivada diretamente pelo credor.
Somente, no estágio cristão do Império Romano foi que se eliminou a figura arbitral do judex e se organizou a justiça com juiz estatal, escrivão e oficiais de justiça, nos moldes atuais.
Com a queda do Império Romano, a Europa conheceu o direito dos povos germânicos, no qual a execução era obra do próprio credor que a praticava independentemente de intervenção judicial. A Atividade processual só acontecia posteriormente à execução privada, quando o devedor questionasse o ato expropriatório levado a cabo pelo credor.
Sob o domínio germânico, a Idade Média procedeu ao remodelamento do processo romano, abolindo a execução privada entes da execução. A actio iudicati, porém, desapareceu, e a execução forçada passou a ser simples consequência da sentença, que se realizava sumária e imediatamente por ordem do juiz, sem forma nem figura de juízo.
A execução como objeto de ação judicial só veio a ressuscitar nos tempos modernos, como exigência do desenvolvimento do comércio e o aparecimento dos títulos de crédito, que exigiam método processual mais enérgico e eficaz na respectiva cobrança.
Nos dois últimos séculos, a incrementação da atividade mercantil, revelou a necessidade de modernizar o sistema de solução de conflito e de realização forçada dos créditos, como exigência irrecusável da atual sociedade de consumo. Generalizou-se, então, o apelo aos meios alternativos de solução de conflitos e aos meios extrajudiciais de execução forçada das obrigações civis e comerciais, principalmente na Europa e na América do Norte.
O Brasil, mesmo sem chegar à generalização dos procedimentos extrajudiciais satisfativos ocorrida na Europa, não ficou fora do movimento de redução da intervenção judicial na cobrança executiva dos créditos, principalmente os empresariais.
Verdadeira explosão do desenvolvimento da fabricação e comercialização dos bens de consumo duráveis se registrou no Brasil nos meados do Século XX, em função dos negócios garantidos por alienação fiduciária, que passaram a permitir a venda extrajudicial da garantia no caso de inadimplemento, por iniciativa do próprio credor, sem necessidade, portanto, de participação da justiça nos atos autos-satisfativos.
No mercado imobiliário da construção civil e da aquisição de moradia outro grande incremento se verificou entre nós no século XX, a partir da execução hipotecária extrajudicial, confiada a agentes fiduciários escolhidos pelo credor. Outro impulso notável da construção civil se deveu à criação da alienação fiduciária de imóveis, que, igualmente, permite a excussão da garantia por meio de procedimento singelo do credor, perante o Registro de Imóveis, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário.
O penhor de joias e outros objetos de valor, desde o Código Comercial de 1850 permite o leilão extrajudicial da garantia, dispensando o processo do Poder Judiciário, por tradição mais que centenária.
Em todos esses casos, e muitos outros, nosso direito positivo convive tranquilamente com a execução civil desjudicializada sem que se possa pensar em quebra do monopólio da jurisdição estatal.
A própria desapropriação dos bens particulares, expressamente autorizada ao Poder Público, por necessidade ou utilidade públicas, ou por interesse social, não é ato que dependa do Poder Judiciário. Ao contrário do que já se afirmou, a desapropriação é ato exclusivo da Administração Pública, que a decreta e, mediante prévio pagamento do preço, a executa por meio de negociação administrativa com o proprietário. A ação especial de desapropriação por sua vez, não se destina a obter autorização judicial para realizar o ato expropriatório. Nela se define divergência apenas em torno do preço e não sobre o mérito da decisão administrativa.
Enfim, o regime constitucional brasileiro não cria uma reserva absoluta da expropriação em favor da jurisdição, nem a execução forçada de obrigações financeiras figura, por princípio constitucional, entre os atos integrantes da jurisdição com exclusividade, nem tampouco o direito brasileiro nega a possibilidade de prática de atos executivos fora dos processos judiciais. Pelo contrário, nosso sistema jurídico processual consagra e estimula a própria atividade jurisdicional cognitiva por meio da arbitragem fora do âmbito da justiça estatal e, desde o século XIX vem implantando e prestigiando vários mecanismos procedimentais de execução de obrigações por quantia certa regulados por legislação especial, os quais são manejáveis fora da jurisdição estatal.
Inadmitir a legitimidade do movimento em prol da ampliação do regime da execução desjudicializada corresponde, data máxima venia, a um retrocesso histórico cultural, num posicionamento frontal à evolução e às tendências irrefreáveis do direito comparado, capitaneado pelas experiências positivas dos países do primeiro mundo mais evoluídos cultural e economicamente.
A nenhum pretexto, enfim, se pode ter a execução desjudicalizada como uma ofensa à garantia constitucional de acesso à justiça. É que os agentes executivos somente se encarregam dos atos executivos, de modo que os eventuais embargos e impugnações ao direito do exequente e aos atos praticados pelos referidos agentes são sempre submetidos à decisão de um juiz togado. A situação é a mesma que se verifica quanto aos atos notariais dos Tabeliões e Registradores, e não é diferente do que se passa com a execução hipotecária do SFH ou na realização forçada dos créditos assegurados por penhor ou alienação fiduciária de bens móveis ou imóveis.
Nenhuma razão há para se ver na desjudicialização executiva uma negação da garantia de acesso ao Poder Judiciário. É que tal acesso é amplo, mas é legalmente subordinado às condições de procedibilidade, dentre as quais o interesse legítimo, que ocorre somente quando a tutela jurisdicional pretendida é necessária e adequada. Ora, quando a lei põe à disposição do credor um serviço público apto a tutelá-lo in concreto, faltar-lhe-á interesse para movimentar a máquina judiciária. Esse interesse, portanto, somente se configurará quando no curso da execução extrajudicial surgir conflito de interesses, cuja solução não se comporte nos poderes do agente executivo. Nessa conjuntura, o sistema de execução desjudicializada não será empecilho ao acesso da parte à tutela jurisdicional, visto que lhe restará assegurada a submissão do incidente contencioso ao juiz competente.
As vantagens mais evidentes da desjudicialização podem ser assim resumidas:
a) Os processos judiciais acumulados aos milhões atualmente correspondem, em mais da metade, a execuções em dificuldade ou impossibilidade de conclusão, por ausência de localização de bens exequíveis;
b) As tarefas práticas de localização de bens a penhorar são de problemático exercício pelos juízos cíveis, mas são mais facilmente praticáveis por um agente especializado na função executiva, sendo remunerado exatamente pelo êxito em seu desempenho;
c) Transferindo-se o encargo para o agente executivo (um notário especializado) os serviços a seu cargo serão, naturalmente, mais eficientes, enquanto os encargos dos juízos do Poder Judiciário serão aliviados de um enorme volume de processos, em benefício da maior disponibilidade de tempo e condições para enfrentar os processos de cognição, que, na verdade, são os que reclamam a atividade pacificadora contenciosa;
d) Os participantes da execução extrajudicial não ficarão privados, quando necessária, da tutela jurisdicional, mas esta será muito menos numerosa e não comprometerá os serviços das varas cíveis comuns, já que poderá ser concentrada numa ou algumas varas especializadas (juízo de execução), como hoje é comum nas comarcas de grande porte, onde existem varas especializadas em questões oriundas dos Tabelionatos e Registros Públicos.
A se levar em conta a experiência exitosa dos países europeus, muitas são as vantagens significativas que a desjudicialização da execução civil oferece, tanto para os credores, como para o próprio serviço público a cargo do Poder Judiciário.
Dificuldades práticas de implantação do novo sistema executivo certamente ocorrerão, mas poderão ser adequadamente superadas por uma vocatio legis maior, por regulamentação meticulosa a cargo do CNJ, inclusive por definição de métodos eletrônicos obrigatórios e uniformes, e, mais ainda, por um plano de implantação progressiva: escolher-se-á, a critério do CNJ, as comarcas de maior porte, onde os Registros de Protesto já contam com estrutura operacional maior, para a instalação do serviço de execução extrajudicial civil. Dessa experiência se extrairão dados úteis para aprimoramento procedimental a fim de prosseguir na progressiva implantação do novo sistema executivo em todas as comarcas do País. É muito importante que o CNJ estabeleça modelos padronizados para os principais atos do procedimento. Para essa regulamentação, será muito útil o aproveitamento da experiência vivenciada pelos países europeus que já consolidaram, com êxito a execução civil por agentes executivos através de procedimentos eletrônicos, a exemplo de Portugal.
Em tempos de economia globalizada, o Brasil não deve e não pode ficar excluído do regime de liquidez e realizabilidade forçada dos créditos seguido pelos países mais desenvolvidos e mais influentes na dinâmica do mercado universal.
Autor: Humberto Theodoro Júnior
Fonte: www.migalhas.com.br