Nunca foi novidade que os contratos de natureza bancária, não obstante as características próprias de executividade (CPC, art. 585, II), sempre foram utilizados de parelha com títulos cambiais, ora como forma de garantia ou reforço ao vínculo obrigacional, ora como forma de implementação de circulação de riquezas na economia. Isso porque, para muito além da executividade judicial em caso em caso de inadimplemento, há características próprias da cambiaridade (abstração, autonomia, circulabilidade, protestabilidade) que tornam o título de crédito muito mais ágil no resgate da obrigação por ele representada e na responsabilização do devedor principal e dos co-obrigados do que o instrumento contratual.
É dentro dessa concepção de maior agilidade e segurança jurídica na circulação do crédito bancário que a Lei n. 10.931/04 instituiu no direito brasileiro a Cédula de Crédito Bancário (CCB). Sua inspiração como instrumento de câmbio remonta às antigas cédulas de crédito rural, industrial, comercial, e de crédito à exportação. Pode, por isso mesmo, ser reduzida à natureza jurídica destas, naquilo que a legislação específica não lhe outorgue tratamento diferenciado.
Para além das características já bastante conhecidas dos títulos de crédito em geral, podem-se anotar algumas peculiaridades importantes da cédula de crédito bancário.
Em primeiro lugar, isto é evidente, deve figurar como favorecido do título a instituição financeira concedente do mútuo (desde que integrante do Sistema Financeiro Nacional) e, na condição de emitente, o mutuário.
Interessa apontar, como diferença específica em relação aos títulos cambiários em geral, o campo das garantias: a Cédula de Crédito Bancário admite constituição de garantia real por apontamento cedular do bem a tanto sujeito. Isto, obviamente, sem prejuízo da constituição das normais garantias fidejussórias concorrentes, tais o aval e o endosso, esse último decorrente da circulação. Quanto a ele também, é bom que se diga, a lei prevê expressamente a possibilidade do endosso em preto (art. 29, § 1º).
Claro que a oponibilidade perante terceiros das garantias reais constantes da cédula dependerá do registro competente (averbação ou registro, dependendo da modalidade da garantia), o que deriva muito mais da natureza da garantia do que da característica ínsita ao título. Impende salientar, por outro lado, que seja qual for a garantia exigida e aceita, aval, ou hipoteca, penhor ou alienação fiduciária, tudo poderá ser consignado na própria cártula ou em documento à parte mencionado na cédula.
O que, como deve parecer claro, relativiza um princípio nuclear dos títulos cambiariformes: a literalidade. A simples indicação no corpo da cédula da existência de uma garantia estabelecida em outro documento, faz com que os termos dessa obrigação instrumentária passem a integrar o título. Fato que, por sinal, nem é privilégio exclusivo da CCB. Todas as outras cédulas, talvez de uma forma diferente, também experimentam esse tipo de exceção à literalidade cambial. Isso porque, para efeitos das cédulas já de longa data existentes no direito brasileiro, a liquidez e certeza do título se confirmam tanto pela soma nela indicada, quanto pelo saldo devedor em planilha de cálculo, ou nos extratos de conta corrente. É precisamente o que ocorre no caso da cédula aqui em apreço (art. 28 e § 2º).
Não se visualizaria corretamente o tema relativo à CCB sem uma breve incursão sobre os juros incidentes sobre o principal.
Importa considerar se estar diante um credor bancário, autorizado à pactuação de juros de mercado capitalizáveis, por força da incidência da Lei n. 4.594/64. O que parece ser interessante, nesse diapasão, é que o endossatário em preto da CCB, ainda que não se enquadre no conceito de instituição financeira, fica sub-rogado nos direitos do credor bancário, fruindo da estipulação de juros e encargos da cédula.
A disposição é expressa no texto da lei e promete causar polêmica nos tribunais (art. 29):
§ 1o A Cédula de Crédito Bancário será transferível mediante endosso em preto, ao qual se aplicarão, no que couberem, as normas do direito cambiário, caso em que o endossatário, mesmo não sendo instituição financeira ou entidade a ela equiparada, poderá exercer todos os direitos por ela conferidos, inclusive cobrar os juros e demais encargos na forma pactuada na Cédula.
De agora em diante, ao menos em tese, desde que cessionária por endosso em preto de uma cédula de crédito bancário, qualquer pessoa pode ser credora de empréstimo com juros capitalizáveis antes previstos expressamente somente para bancos. O ponto promete muita discussão.
Uma ou duas palavras sobre o precedente do Colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em acórdão recente oriundo da sua E. 23ª Seção de Direito Privado, considerou inconstitucional1 o diploma legislativo (Lei n. 10.931/04) que instituiu a Cédula de Crédito Bancário (CCB) por afronta à LC n. 95/1998
A declaração de inconstitucionalidade aqui em pauta está sedimentada em fundamentos de ordem eminentemente formal. Vale dizer, o entendimento sufragado no precedente reconhece haver desconformidade entre a norma ordinária e a Lei Complementar já que, por impropriedade técnica do legislador, a regulação relativa à cédula de crédito bancário não seria pertinente no bojo de uma legislação devotada a regular o mercado imobiliário. Deduziu a Turma Julgadora da 23ª Seção do TJ/SP que, da intelecção do art. 1º da Lei n. 10.931/04, não haveria qualquer correlação – lógica ou jurídica – entre o campo normativo por ela anunciado e as matérias substancialmente regulamentadas nos artigos 26 a 45, o que estaria a afrontar a previsão contida na LC 95/98.
Não se pode, por evidente, negar o valor de verdade do fundamento. Entendeu a Turma, acompanhada de boa doutrina, que está presente a mácula da inconstitucionalidade nos diplomas que se vocacionam a regular uma determinada matéria, e, em seus dispositivos, acabam se imiscuindo em seara diversa, estabelecendo uma ‘promiscuidade’ entre temas que, pela boa técnica legislativa, deveriam ser tratados de forma estanque.
Apreenda-se bem o escopo da declaração de inconstitucionalidade advinda da Corte Paulista: a irregularidade na formatação da Lei 10.931 consiste numa questão de meta-direito. Ou seja, o vício está não na pauta de condutas substanciais previstas pela lei, mas no desrespeitar normas jurídicas que regulam a criação de outras normas jurídicas, dentro de um campo de invalidade que concentra seus efeitos naquilo que a teoria da norma jurídica (Bobbio) chama de ‘norma sobre norma’. Posição que, aliás, encontra respaldo da Teoria Pura de Hans Kelsen, para quem o fundamento de validade de uma norma é sempre outra norma, precedente e de hierarquia mais elevada, com quem seja compatível.
O contraponto talvez esteja em que a propalada discrepância entre os propósitos anunciados pela norma e sua pauta de regulação de condutas não seja tão evidente quanto entendeu a Colenda Turma do TJ.
É que esse título veio previsto numa legislação que cuida do acesso ao crédito para financiamento imobiliário, em cujo corpo se prevê, de forma coerente, um dos muitos instrumentos para tanto concebidos. Se é verdade que o instrumento cambiário previsto pela legislação atende aplicações para muito além do âmbito do crédito imobiliário, não é menos verdade que se trata de um instrumento que se presta, lato sensu, à consecução do acesso ao crédito, numa sociedade que – hoje – dele é maciçamente dependente. Tendo sido prevista, como foi, numa legislação dessa natureza, era razoável supor que – como consectário ao tratamento do tema – o legislador decidisse regular alguns dos mecanismos atinentes ao instrumental de crédito, sem restringi-lo a uma dada área de concentração econômica (a imobiliária, por exemplo).
Interpretação que, diga-se de passagem, se mostra consentânea com substrato econômico-social, que, desde os tempos de suas mais imemoriais formulações, sempre esteve à base da teoria dos títulos de crédito.
Sendo, dos ramos do direito, o mais aproximado da vida econômica da sociedade, o direito comercial2, no geral, e a teoria dos títulos de crédito, no particular, jamais puderam ser compreendidos senão dentro das vicissitudes, necessidades e dinamismo próprios da economia de um dado grupamento social, num certo momento histórico. Nessa concepção, não hesita a doutrina, sempre puderam ser considerados como instrumento de circulação de riqueza e crédito, sem que se pudesse compreendê-los de forma estanque ou autárquica em relação a políticas liberais de regulação do crédito.
Nesse sentido, cumpre recuperar o precioso escólio de WALDIRIO BULGARELLI, que, enfático nesse ponto, ensina que toda a teoria geral dos títulos de crédito foi engendrada a partir das perspectivas e necessidades da vida comercial. Leio, de seu excelente compêndio sobre os títulos de crédito:
“A teoria geral dos títulos de crédito, como sabido, não foi concebida para o estudo, explicação, compreensão, qualificação e classificação de documentos constitutivos de direitos criados racionalmente em gabinetes, fora da realidade, como hoje, muitas vezes, sói ocorrer com freqüência reprovável, mas se destinava, antes de mais nada, a explicar a existência e efeitos de papéis, surgidos historicamente ao sabor das necessidades do comércio, dotados de uma verdadeira força magnética de exigibilidade dos créditos neles mencionados, que os usos e as práticas comerciais haviam consagrado, numa lenta evolução”. [Títulos de Crédito, 14 ed., São Paulo: Atlas, 1998, pp. 86/87].
Dentro dessa concepção, então, parece não haver melhor lugar para prever a cédula de crédito bancário que não o texto de uma legislação que regulamenta uma das mais importantes expressões do crédito existente na sociedade contemporânea: o crédito imobiliário.
Mesmo porque, bom que se diga, é característica da cártula em questão a possibilidade, de resto não encontradiça nos demais títulos cambiariformes, de constituição de garantia real (imobiliária, inclusive) como reforço do vínculo obrigacional estatuído entre as partes.
Não que não se reconheça o valor do argumento expendido no precedente sob crítica. O ponto é que, para a sociedade de hoje, de crédito massificado, com circulabilidade eletrônica e existência virtual, o instrumento não pode ser compreendido isolado do contexto econômico para o qual foi divisado.
Ressalta ser necessária uma compreensão mais ampla da posição do legislador, que, é certo que comete lá os seus desatinos de quando em quando, mas que não pode, tanto quanto nós os operadores do direito também não podemos, ignorar a realidade da vida.
Lembro, aqui, a lição do genial RIPERT, que, mais advertindo do que ameaçando, ponderava que quando o Direito ignora a realidade social, a realidade social ignora o Direito.
Nota:
(1)Consoante artigo publicado no Jornal Valor Econômico:
TJ/SP é contrário à lei de cédula de crédito
Uma recente decisão do TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo, deixou em alerta o setor bancário. O motivo de preocupação dos representantes dos bancos foi o resultado de um dos primeiros julgamentos em segunda instância que aborda a Lei nº 10.931, de 2004. A corte considerou inconstitucional a legislação que, dentre outros pontos, regulou a cédula de crédito bancário (CCB), um dos instrumentos mais usados hoje pelos bancos. A decisão resulta da análise de uma ação de um cliente contra o Banco Intercap.
Antes da edição da lei, a cédula de crédito bancário já estava prevista na Medida Provisória nº 2.160-25, de 2001. Porém, a cédula não era muito usada por estar prevista em uma medida provisória e poder ser alterada na conversão em lei. Hoje, porém, conforme o diretor jurídico da Febraban – Federação Brasileira de Bancos, Johan Albino Ribeiro, o uso do instrumento é generalizado. “No começo a decisão do tribunal assustou pelo ineditismo, mas não preocupou porque os bancos não tomaram nenhuma medida restritiva em relação à cédula de crédito bancário”, afirma.
O advogado Marcello Klug Vieira, do escritório Albino Advogados, explica que a cédula de crédito bancário foi criada no bojo das discussões sobre medidas para redução do spread bancário. E a cédula, por ser um título executivo, mudou a forma de cobrança de créditos pelos bancos, tornando-a mais ágil. Antes, de acordo com ele, a cobrança se dava por meio de uma ação de conhecimento que demorava alguns anos e, posteriormente, quando reconhecido o valor devido, partia-se para a execução. Sendo a cédula um título executivo, o banco pode agora entrar diretamente no Judiciário para cobrar a dívida, eliminando a fase de conhecimento.
Segundo Vieira, a cédula abrange qualquer tipo de empréstimo. Outro ponto interessante para as instituições trazido pela legislação foi a possibilidade de capitalização de juros. Pela lei, as instituições bancárias ficaram amparadas para aplicarem os chamados juros sobre juros, que tornou-se de difícil questionamento. Além disso, conforme Vieira, a cédula de crédito bancário define o valor exato da dívida, data de pagamento e ainda permite a listagem das garantias a serem oferecidas. Há também a autorização para a cobrança de uma comissão permanente diária, uma espécie de percentual pago diariamente pelo contrato. E os bancos , como portadores das cédulas, podem negociá-las com terceiros.
No recurso analisado pela 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP, os desembargadores consideraram que a Lei nº 10.931/04 é inconstitucional porque vai contra a Lei Complementar nº 95, de 1998. A lei complementar trata da elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Segundo ela, qualquer lei deverá indicar em seu primeiro artigo o seu objeto e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios. E ainda determina que cada lei deverá tratar de um único objeto e não poderá conter matéria estranha ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. A câmara entendeu que o artigo 1º da Lei nº 10.931 trata exclusivamente do regime especial de incorporações imobiliárias, “não fazendo menção sobre a cédula de crédito bancário”. Por essa razão, a câmara entendeu, que a lei violaria a previsão da Lei Complementar nº 95.
Apesar do precedente do TJSP e do surpresa inicial, o diretor jurídico da Febraban afirma que os bancos estão tranqüilos, principalmente depois que a questão jurídica foi estudada. Segundo ele, a Febraban encomendou um parecer a um constitucionalista segundo o qual o fato de o primeiro artigo não tratar da cédula de crédito não significa que a lei poderá ser invalidada.
O sócio da área de mercado de capitais do Mattos Filhos Advogados, José Eduardo Carneiro Queiroz, afirma que a discussão sobre o vício de elaboração da lei é antiga e não é uma tese que predomine no Judiciário. Segundo ele, o próprio artigo 18 da Lei Complementar nº 95 estabelece que se houve imprecisão na lei, mas se o processo legislativo foi regular, não há escusa para que a legislação não seja cumprida. “Hoje é muito comum uma lei que versa sobre um assunto trazer no meio um outro”, afirma. Além disso, ele diz que a lei sobre o patrimônio de afetação traz matérias correlacionadas.
Fonte: www.sedep.com.br